Rosemary Segurado
Professora da PUC-SP e autora de "Desinformação e Democracia" fala sobre como as redes sociais têm mudado o cenário político – com influencers como candidatos –, os efeitos da desinformação para os sistemas democráticos, como enfrentar a desinformação e a importância da regulamentação das plataformas digitais
Sobre
Rosemary Segurado é professora do Curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-SP. É pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp) da PUC-SP.
É doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP e pós-doutora em Comunicação Política pela Universidade Rey Juan Carlos de Madrid. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em mídia e política, internet e política, desinformação, comportamento político, estudos eleitorais e partidos políticos.
Editora da Revista Aurora e autora dos livros “Desinformação e democracia: A guerra contra as fake news na internet” (2021), “Ativismo digital hoje: Política e cultura na era das redes” (2021, org.), “O Golpe de 2016: razões, Atores e Consequências” (2016, com Luiz Antonio Dias), entre outros.
FCW Cultura Científica – Professora Rosemary, como o uso das redes sociais têm mudado o cenário político, em que partidos e nomes tradicionais perdem importância diante de quem tem mais presença online e sabe usar melhor os meios de comunicação digitais?
Rosemary Segurado – Essa foi a grande questão novamente nessas eleições municipais em 2024, assim como ocorreu nas mais recentes eleições que tivemos no país. Novos atores políticos ou atores políticos com perfis diferentes e com características ideológicas também diferentes ocupam cada vez mais o espaço político. Esse não é um fenômeno brasileiro, mas global. Tais atores se notabilizam na política por já terem presença nas plataformas digitais, antes de se tornarem políticos. Costumávamos falar de meios de comunicação de massa, principalmente rádio e televisão, mas a lógica muda quando passamos para o tipo de processo informacional que vem com o digital. No rádio e na televisão, tínhamos algumas grandes empresas midiáticas para muitos receptores. Entendo que isso não é um consenso na Ciência Política, mas essa mídia passou a ter papel como ator político por ter recursos, ou seja, os próprios canais de comunicação. Esses emissores se aliavam com atores políticos ou com partidos, porque não há mídia neutra, e, no jogo político, faziam composições de modo a atuar nas diferentes conjunturas. Foi assim até os anos 1990 e 2000. Depois, quando chegamos no universo informacional e comunicacional das plataformas digitais, ingressamos em um cenário em que eu, você, qualquer um, além de ser receptor se torna também emissor. Passamos a ter uma infinidade de canais nas diferentes plataformas e redes sociais. Quando tentamos entender fenômenos como Pablo Marçal e correlatos, vemos que em um cenário com milhões de canais é difícil ser ouvido. Então, esses personagens apelam para o diferente, colocam nariz de palhaço, andam de monociclo, gritam ou cantam bem alto. É a economia da atenção. O professor Muniz Sodré, no livro O Império do Grotesco, recupera historicamente os motivos que fazem o grotesco ser atraente e mobilizar a nossa atenção. Em âmbito global, a extrema direita entende disso e sabe manipular muito bem as plataformas, sabe utilizar os recursos digitais para atrair a atenção, mesmo que muitas vezes o faça com mentira, desinformação, fake news ou discurso de ódio, porque o ódio mobiliza muito mais que qualquer outro afeto.
FCW Cultura Científica – Em um cenário em que os novos atores políticos podem dispensar a mídia tradicional, os partidos também se tornam menos relevantes?
Rosemary Segurado – Neste segundo semestre de 2024, com a minha turma de graduação de Ciências Sociais na PUC-SP, estamos trabalhando sobre teorias da democracia, analisando as teorias clássicas que ajudam a entender parte do mundo atual mas não por completo, justamente por conta desse novo elemento. Porque um ponto é falar de ação política, do papel dos partidos nos anos 1960 ou 1970, e outro é chegar no século 21 e entender esse papel. Com meus alunos, retomei recentemente um autor que admiro muito, o Bernard Manin, que tem um livro importante para esse debate, As Metamorfoses do Governo Representativo, no qual discute os aspectos dessa crise da democracia representativa, trabalhando com a ideia de transformação de um momento histórico em que deixamos a democracia centrada nos partidos, onde o partido político é o elemento que congrega os seus afiliados. Partido é uma parte da sociedade, temos um PT, um PSDB ou um PMDB que são partes da sociedade, cada uma no seu interior. Na democracia de partido se debatiam diferentes correntes e o partido dizia para a população o que ele representa e o que defende. Do fim do século 18 a meados do século 20, principalmente com o advento da televisão, vivemos essa democracia de partido. O Manin diz que chega um momento em que esses partidos perdem a potencialidade de atuar no jogo democrático, independentemente do seu perfil ideológico, pode ser direita, centro ou esquerda. Eles começam a perder espaço justamente porque os candidatos começam a ter canais para falar diretamente com a população. O candidato passa a não precisar mais do partido como antes, ele vai diretamente ao eleitor e diz quais são as propostas dele para São Paulo, por exemplo. Os partidos passam a importar menos e viram uma sopa de letrinhas, cada hora surge um novo e ninguém mais consegue acompanhar. Passamos a ver exemplos sem qualquer significado ideológico ou programático, do tipo um Partido da Mulher Brasileira fundado por cinco homens e que não tem mulher em sua direção. E isso tem importante impacto não apenas no sistema partidário, mas para a democracia.
FCW Cultura Científica – Quais são os riscos para a democracia quando passamos a ter influencers que se tornam políticos mas, ao mesmo tempo, os políticos tradicionais e que fizeram carreira na política não são capazes de se tornar influencers?
Rosemary Segurado – Acho que o risco é exatamente o que vimos nesta eleição municipal em São Paulo, é de uma gravidade imensa. A diferença de votos dos candidatos que foram para o segundo turno, Ricardo Nunes e Guilherme Boulos, para o Pablo Marçal foi muito pequena, de alguns poucos milhares em meio a 9 milhões de eleitores, ele não foi para o segundo turno por 1 ponto percentual. Por quê? Porque ele manipulou muito bem os aspectos do digital, ele vem com uma bagagem, tem uma carreira construída no digital e mais de 13 milhões de seguidores. Ele já entra na disputa com o V Zero alto, que é o que os “coaches” como ele gostam de falar. Outro ponto importante, que representa um desafio tremendo para o campo progressista, é que não se consegue tantos milhões de seguidores em tão pouco tempo sem pagar. Não é um crescimento orgânico, como muitos dizem, é preciso pagar pelos impulsionamentos e pagar caro, porque a economia do digital é caríssima. É muito caro pagar pela programação algorítmica, por cálculos e estratégias. Não existe acaso na economia digital.
FCW Cultura Científica – Mas os seguidores desses novos políticos não os acompanham apenas como resultado dos algoritmos, também por causa dos discursos, informações e ideias que recebem.
Rosemary Segurado – Esses candidatos utilizam algo que tem sido difícil para a esquerda e para o campo progressista entender, que é a narrativa antissistema. Antes, antissistema era, por exemplo, protestar contra a globalização capitalista nos anos 1990, era ser contra o sistema neoliberal, contra as desigualdades. Agora, o antissistema é a extrema direita com todas as suas caras e nomes, em um discurso que diz que o estado é ruim, que o estado e o sistema não funcionam. Isso que o Marçal fez e que antes foi feito pelo Bolsonaro cai na graça das pessoas, um antissistema que diz "vamos acabar com o SUS porque não funciona, tem que privatizar". Aí o cidadão que fica 4 horas na fila do SUS diz "ele tem razão, o SUS não funciona, vamos privatizar". Só que ele não entende que se privatizar nem na fila poderá ficar.
FCW Cultura Científica – Um candidato como Marçal é uma nova versão de um Bolsonaro?
Rosemary Segurado – Isso é algo em que tenho pensado. Há uma diferença, o Marçal não é o mesmo que o Bolsonaro, embora tenham valores e princípios parecidos e disputem na mesma base. O Bolsonaro era o "mito", como diziam seus seguidores, uma figura simbólica. Já o Marçal encarna a figura do valentão, é grosseiro na fala, é petulante e isso atrai certos setores da população que acham que só com valentia é possível sobreviver na selva do mundo atual. Boa parte da população se encontra desamparada e, infelizmente, as organizações sociais e as organizações sindicais foram perdendo seu lugar na sociedade, por uma série de questões, e os filhotes de extrema direita começaram a se notabilizar. Eu participo de uma pesquisa feita na Espanha, onde há o Vox, um partido de extrema direita inspirado no bolsonarismo e no movimento internacional neofascista criado pelo Steve Bannon. Nas eleições deste ano na Espanha, o Vox lançou uma plataforma chamada Se Acabó La Fiesta. Aí você pergunta, mas acabou qual festa? Eles dizem que é a festa dos impostos, do sistema corrupto, a festa dos comunistas no poder, da elite. É esse o discurso. É claro que cada cultura política adapta isso para o seu repertório, mas a estratégia é a mesma. Estamos entrando na fase da extrema direita 4.0. Se Trump, Bolsonaro e Orban eram a extrema direita 2.0, agora Marçal e outros como o Nayib Bukele, em El Salvador, ou o Javier Milei, na Argentina, que diz se comunicar por psicografia com um cão morto, são a extrema direita 4.0. Eles aprimoram a linguagem.
FCW Cultura Científica – Quais são os efeitos dessa linguagem de desinformação?
Rosemary Segurado – Para a percepção das pessoas, quando a informação vem misturada com a desinformação, a verdade com a mentira, tudo se torna a mesma coisa. Para o jornalismo, se é fake não é notícia, ou não deveria ser, porque o jornalismo tradicional tem procedimentos de apuração, de checagem, de revisão e de edição. A desinformação tem um interesse, uma intenção em atingir alguém, seja um indivíduo, um grupo, um movimento social ou um estado. Durante a pandemia, circulou muito pelas redes sociais o boato de que o vírus da Covid-19 surgiu na China porque as pessoas comiam morcego, boato que visava atingir uma população, um país. Verdade e Política nunca combinaram muito bem, como disse a Hannah Arendt, porque às vezes o político para enaltecer suas características dá uma forçada. Mas a desinformação tem cálculo, tem estratégia, quem produz sabe o que e quem quer atingir. Um dos primeiros alvos da extrema direita em todo o mundo é a imprensa, que é chamada de comunista, ou elitista, feita por gente perigosa. Entretanto, essa deslegitimação da imprensa como fonte de informações confiável e de qualidade não ocorre apenas pela ação da extrema direita, mas pela própria imprensa, hoje, por exemplo, cheia de programas sensacionalistas de cobertura de violência, que gritam por atenção e intoxicam a população. O Pepe Mujica, quando foi presidente do Uruguai, proibiu a exibição de programas do chamado jornalismo policial em determinados horários em que poderiam ser vistos por crianças, por apenas mostrarem a violência, destilando e cultivando o ódio.
FCW Cultura Científica – Aproveitando esse exemplo do Uruguai, qual é a sua opinião a respeito da regulamentação das redes sociais e da informação que transmitem?
Rosemary Segurado – Esse é um ponto fundamental. A Shoshana Zuboff, de Harvard, em A Era do Capitalismo de Vigilância, um livro muito importante, questiona porque, se regulamos tanta coisa na história da humanidade, não podemos regular as plataformas digitais. Tivemos um projeto de lei, o PL 2630/2020, que chegou a entrar em regime de votação e é assustador o que aconteceu em Brasília. O relator, deputado Orlando Silva, acabou retirando o projeto porque viu que ia perder e, na tramitação legislativa, se o projeto perde você tem que começar tudo de novo, começar do zero, então ele tirou porque ia passar por comissão disso, comissão daquilo, viu que não sairia. Tenho colegas de coalizão de direitos na rede, de organizações que lidam com essa temática, que estavam em Brasília acompanhando e se surpreenderam com o lobby feito por grandes empresas de tecnologia, que diziam que o projeto de lei era censura, era contra a liberdade de expressão. Mas essas empresas não estão preocupadas com a democracia ou com qualquer valor digamos republicano ou iluminista, elas estão preocupadas apenas em monetizar.
Quando tivemos os ataques a escolas em Santa Catarina e em São Paulo, em 2023, o Flávio Dino, que era o ministro da Justiça, disse para as plataformas tirarem perfis do ar e as empresas reclamaram em nome da liberdade de expressão. E o Dino falou, se vocês não tirarem eu derrubo e multo, aí eles tiraram. Quando as empresas donas das plataformas colocam essa questão como censura, como liberdade de expressão, elas estão também encobrindo a liberdade de praticar crimes. Não existe liberdade de expressão ilimitada, porque senão é o que o Hobbes dizia, é a guerra de todos contra todos, é uma guerra civil instalada. Mas essas empresas, elas têm um lobby poderosíssimo em todo o mundo. Na União Europeia se chegou a alguns pontos interessantes de regulamentação, mas no Brasil, com a configuração atual do Congresso, não vejo esperança. A Zuboff trabalha bastante essa questão na pesquisa dela. As pessoas falam "mas eu não tenho nada a esconder, não tem problema", mas não é isso. É o quanto o nosso uso e o quanto o nosso tráfego de informações pela rede revela sobre nós. Os produtores das plataformas digitais têm tudo sobre nós e, com isso, fazem um tipo de programação algorítmica para nos manter nas bolhas e currais que querem nos aprisionar. Que liberdade de expressão é essa?
FCW Cultura Científica – O que se pode fazer para enfrentar a desinformação, seja por parte do estado, da imprensa, dos formadores de opinião e da sociedade?
Rosemary Segurado – Em primeiro lugar, mesmo com as dificuldades da regulamentação, essa é uma luta que não pode ser abandonada, porque a partir da regulamentação teremos condições de pôr parâmetros para isso tudo. Entretanto, só a regulamentação não adianta. Ela é um aspecto fundamental, mas há outros pontos muito importantes como, por exemplo, uma educação midiática e digital. Fui convidada para dar uma aula em um curso de gerontologia e as alunas estavam voltando desesperadas dos estágios nas UBS e UPA, porque os idosos se recusavam a tomar certos remédios. Hoje, os idosos estão muito conectados e recebem de parentes ou amigos pelo WhatsApp informação de que, por exemplo, um determinado medicamento para hipertensão causa câncer de bexiga. A educação digital é fundamental para a pessoa se perguntar sobre a veracidade da informação que recebe pelo celular ou computador. Outro ponto muito importante, mas para isso seria preciso vontade política e recursos, é a criação de plataformas alternativas, a criação de outras redes sociais. O Evgeny Morozov, que esteve no Brasil recentemente, tem um podcast ótimo chamado The Santiago Boys onde conta a história de como o Salvador Allende, na época em que foi presidente, criou uma equipe de engenheiros para trabalhar em um projeto de redes tal qual é a internet hoje. É algo possível de se fazer. Vai um tanto de recursos, mas talvez o recurso mais caro seja a vontade política para bancar uma empreitada como essa, que evidentemente é uma briga de cachorro grande, criar uma plataforma para competir com o Google e com o Facebook.
FCW Cultura Científica – Como a senhora vê o futuro da democracia considerando o panorama atual da economia, da política e da sociedade digitais?
Rosemary Segurado – É difícil ser otimista, eu tento para alguns públicos, principalmente para a moçada, porque é triste deixar jovens sem esperança. Temos uma correlação de forças muito desigual. O universo das plataformas digitais constitui uma economia fortíssima, o Elon Musk, por exemplo, está no caminho de se tornar o primeiro trilionário, isso ao mesmo tempo em que um percentual imenso da população vive com 1 dólar por dia, aquelas estatísticas que você conhece bem. Não é desigualdade, é um abismo sem fim. É uma luta muito complexa e o campo progressista, chamando assim de maneira bem genérica, porque ele também é muito heterogêneo, mas o campo progressista tem tido muita dificuldade de atuar nesse processo. E a luta pela democracia é diária. Todo dia acordamos e precisamos lutar pela democracia, porque ela é um sistema inacabado, os gregos diziam isso, ela não é o campo do consenso, ela é o campo do conflito. Podemos processar consensos a partir dos conflitos, mas muitas vezes ficamos no conflito e não saímos dele. Acho que temos um longo processo de aprendizado pela frente.
Essas eleições municipais mostraram que, pelos interesses de alguns conglomerados midiáticos, nós tratamos republicanamente quem não é republicano. O Pablo Marçal não poderia ter sido convidado para os debates na televisão simplesmente porque ele não cumpria regras eleitorais básicas. Mas as emissoras viram que ele vinha bem nas pesquisas e decidiram chamá-lo. Questões como essas precisam ser revistas. Dizem que a culpa não é da mídia, mas ela tem porcentagem de responsabilidade sim. O jogo com a extrema direita é bruto, é muito duro. Não estou dizendo para responder na mesma moeda, com ódio, mas temos que responder com firmeza a esses candidatos que são uma fraude, que não poderiam nem ser síndicos de prédios, muito menos prefeito de uma cidade como essa ou qualquer outro cargo público. A justiça eleitoral e as instituições democráticas são morosas, elas não acompanham a velocidade de transformação provocada pelas plataformas digitais. Além da educação midiática, precisamos valorizar a educação política, para que as pessoas entendam o valor e a importância da democracia. Porque sem democracia vamos entrar em regimes autocráticos, é só olhar para boa parte do mundo e ver em que tipo de situação a sociedade pode ser jogada. É um cenário de muito alerta, precisamos estar muito atentos e as forças democráticas precisam se mobilizar pela defesa da democracia. A democracia pode não ser um regime perfeito mas, como dizia o Churchill, é o melhor que temos.
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