Marco Aurélio Nogueira
O autor de "A Democracia Desafiada" fala sobre as dificuldades enfrentadas pelos sistemas democráticos atuais, a insatisfação com a democracia, do que a democracia precisa para poder funcionar bem e como educar politicamente os cidadãos. Explica também os motivos que levaram Donald Trump novamente à Casa Branca
Sobre
Marco Aurélio Nogueira é professor titular aposentado da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Foi docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (FCL-Araraquara) e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, PUC-SP e Unicamp). É colunista do jornal “O Estado de S. Paulo”, tradutor e ensaísta.
Bacharel em Ciências Políticas e Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1972) e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1983), com pós-doutorado na Universidade de Roma (1984-1985). De 1987 a 1991, foi diretor de publicações da Fundação para o Desenvolvimento da Unesp, cargo a partir do qual organizou e dirigiu a Editora Unesp. Dirigiu também a Escola de Governo e Administração Pública da Fundap – Fundação para o Desenvolvimento Administrativo (1991-1995) e o Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais
da Unesp (2011-2016).
É autor de "A Democracia Desafiada: recompor a política para um futuro incerto" (2023), "Um Estado para a sociedade civil. Temas éticos e políticos da gestão democrática" (2015), "As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo" (2013) e "Potência, limites e seduções do poder" (2008), entre vários outros que escreveu, organizou ou traduziu.
FCW Cultura Científica – Professor Marco Aurélio, como podemos explicar a nova eleição de Donald Trump, com seu discurso polarizador na campanha, seus processos e após todos os problemas de seu primeiro mandato, incluindo a invasão do Capitólio?
Marco Aurélio Nogueira – É um desafio a mais para a democracia. Os Estados Unidos modelaram a democracia a partir do século 18 e, em boa medida, propiciaram a adoção desse modelo pela maior parte dos países do chamado mundo ocidental. Forjou-se assim um sistema de regras, procedimentos, divisão de poderes, instituições de controle, freios e contrapesos (checks and balances) que garantiram a estabilidade da democracia e até mesmo sua progressiva ampliação. Acontece que o mundo mudou muito nas últimas décadas e o conjunto de mudanças que se sucederam pôs em xeque o modo de governar, a organização da democracia e seu funcionamento. Os governos passaram a ter mais dificuldades para tomar decisões que atendessem às expectativas sociais, as quais se ampliaram e se fragmentaram. Alterações importantes no modo de vida e na cultura dos cidadãos — transformações no trabalho, no estilo de vida, nos valores, tudo alavancado pela velocidade das novas tecnologias de informação e comunicação — fizeram com que a democracia reduzisse sua capacidade de cumprir suas "promessas" e dialogar com a população. As pessoas começaram a criticar a política tal como vinha sendo praticada, e, a partir daí, cresceu um sentimento de "antipolítica", que atingiu em cheio os agentes democráticos, suas elites e instituições.
Em boa medida, essa situação tem impulsionado a derivação de muitas sociedades para formas extremas de autoritarismo e populismo, com certo desinteresse em reproduzir e sustentar a democracia. Trump, nos Estados Unidos, é fruto dessa nova realidade, aqui mencionada de forma simplificada. Venceu as eleições porque soube captar a insatisfação social contra o establishment, representado pela candidata democrata Kamala Harris, que carregou o ônus de ser vice-presidente do desgastado Joe Biden. Trump venceu também porque os democratas não souberam compreender os apoios que a população vinha dando a ele, explicando-os como "passageiros", como manifestação de "racismo" e misoginia, ou como resultado de uma exposição excessiva às fake news despejadas pelas mídias sociais. A insistência democrata em valorizar pautas identitárias (gênero, raça, etnia, orientação sexual) não ajudou a construir uma narrativa suficientemente articulada para atrair a população e assimilar suas críticas.
O mais curioso – e assustador – é que boa parte do eleitorado que votou em Trump o fez por acreditar que era preciso defender a democracia, e isso em todos os recortes possíveis (homens brancos e negros, mulheres brancas e negras, latinos e hispânicos). O mais trágico é que a principal potência mundial será agora governada por um negacionista assumido, o que certamente dificultará ainda mais o alcance de algum consenso sobre a emergência climática e ambiental. Tudo isso mostra que há uma disputa aberta sobre o significado de democracia e sobre o imaginário norte-americano. Os democratas (e sobretudo os progressistas) terão de correr atrás do prejuízo e rever muitas de suas posições. É algo que vale para os Estados Unidos e para todas as sociedades contemporâneas.
FCW Cultura Científica – Como essa nova vitória de Trump poderá impactar a democracia nos Estados Unidos e no mundo, inclusive nas próximas eleições no Brasil?
Marco Aurélio Nogueira – O impacto principal será sobre o sistema democrático nos Estados Unidos: será ele capaz de resistir às investidas autoritárias de Trump, conter suas propostas mais agressivas, como a de expulsar imigrantes não regularizados, turbinar o uso de petróleo e considerar que as preocupações climáticas e ambientais são perda de tempo e desperdício de recursos? Se Trump conseguir aprovar tais propostas, o cenário ficará mais sombrio, com repercussões que tendem a embaralhar muitas peças no tabuleiro mundial. É evidente que impactos também ocorrerão no plano das relações internacionais, no modo como as principais potências (EUA, União Europeia, Rússia, China) interagem e disputam espaços entre si. O populismo autoritário poderá se beneficiar e crescer.
Quanto ao Brasil, é difícil imaginar que a vitória de Trump dê novo fôlego à extrema direita brasileira, a ponto de aumentar sua potência eleitoral em 2026. Algo assim pode ocorrer, claro. Mas não me parece o mais provável, especialmente se considerarmos que o eleitorado brasileiro manifestou-se expressivamente em favor de posições políticas mais moderadas e “centristas”, como ocorreu nas eleições municipais de outubro de 2024. Mesmo que as correntes progressistas não tenham se projetado, é fato que a extrema direita se dividiu e não mostrou tanta capilaridade quanto se imaginava. No entanto, tudo dependerá de como as correntes democráticas e as esquerdas irão se comportar daqui para frente.
FCW Cultura Científica – Em seu novo livro, A Democracia Desafiada, o senhor explora dificuldades enfrentadas pelos sistemas democráticos atuais. A democracia está em crise?
Marco Aurélio Nogueira – Esse é um tema que sempre provoca controvérsia e, para abordá-lo, sugiro partir de uma ideia de democracia. Do que estamos falando quando mencionamos democracia? Podemos adotar uma perspectiva mais ampla e ir da democracia política para a social ou econômica, considerando estas últimas sob a ótica de uma igualdade substantiva. Contudo, podemos nos ater – e o meu livro tenta ficar nesse terreno – a uma concepção de democracia política entendida como um sistema. Ou seja, a democracia não é uma ideia abstrata que paira no ar; ela se concretiza em sistemas estruturados, que podem ser mais ou menos bem organizados. No primeiro caso, teríamos uma democracia que, em tese, funcionaria melhor e produziria melhores resultados. Já em sistemas menos estruturados, a democracia opera de forma instável, com dificuldades para produzir resultados e enfrentando muitas crises. A própria ideia de crise da democracia não é tão geral quanto se costuma afirmar, pois não é verdade que a democracia deixou de funcionar. É certo que, nas últimas décadas, ela sofreu abalos que fizeram com que a ideia de crise emergisse com mais força, mas, se olharmos, por exemplo, para a experiência dos Estados de bem-estar na Europa Ocidental, a democracia ali nunca foi vista como um sistema em crise. Mesmo na França, antes da ascensão de Marine Le Pen, a democracia não era considerada um sistema em crise. Portanto, precisamos ter certo cuidado para não generalizar demais a ideia de crise ou de desafio à democracia. A construção democrática é, afinal, um exercício permanente.
FCW Cultura Científica – Do que a democracia precisa para poder funcionar bem?
Marco Aurélio Nogueira – Vista como um sistema, em primeiro lugar, ela precisa de instituições estáveis e bem desenhadas em relação às sociedades existentes. Por exemplo, o sistema democrático institucional brasileiro, para ser bem desenhado, deve corresponder à situação brasileira. Não há uma institucionalidade democrática única e comum a todas as sociedades, e muito menos uma institucionalidade perfeita, porque as instituições são dinâmicas e sofrem abalos. Se pegarmos uma instituição como uma grande empresa, por exemplo, veremos que ela pode assumir diferentes formatos, adaptando a distintas circunstâncias e a diferentes planos de expansão. Ela se modifica, se reestrutura, adota novos métodos de organização de trabalho e assim por diante. Dá-se mesmo com os partidos e as instituições políticas. Em segundo lugar, o sistema democrático precisa de organizações, das quais a mais importante, pensando no sistema democrático como um sistema político, são os partidos políticos. Os partidos políticos são organizações que criam uma espécie de elo entre o sistema democrático e a população. O sistema democrático também necessita de cidadãos bem educados politicamente; não se pode ter democracia em uma sociedade composta por um bando de loucos. A democracia precisa de cidadãos bem educados política e civicamente. Esse é um recurso precioso para as democracias, porque são os cidadãos que, em última instância, vão decidir, nas eleições, a qualidade da democracia. São os cidadãos que vão impulsionar a democracia para padrões mais elevados ou menos elevados. Isso significa, explorando a ideia de organizações, que o sistema democrático precisa também, de modo estratégico, de um parlamento ativo e representativo, que seja expressão da vida social e comunitária dos cidadãos. Porque, se o parlamento se descolar da sociedade, ele vai girar em falso e deixar de ser um elemento representativo. O sistema democrático precisa também de um Executivo criterioso. Se o Executivo for tresloucado, a democracia não aguenta; ela passa a ser cancelada, como ocorre em sistemas com presidentes autoritários. Se você tem um Nicolás Maduro no poder, por exemplo, fazendo as coisas que ele e o grupo dele fazem, não há democracia que suporte. E o Judiciário, que é o terceiro grande poder, tem de ser sereno, defender a constituição e não postular um lugar no jogo político propriamente dito. As supremas cortes no mundo todo fazem esse papel. Podem fazer sempre esse papel ou podem dar umas derrapadas e entrar na briga política, tomando posição, o que é um grande complicador para o sistema democrático.
FCW Cultura Científica – Como explicar a insatisfação com a democracia?
Marco Aurélio Nogueira – A democracia continua sendo proclamada aos quatro ventos, mas é questionada o tempo todo, e a insatisfação se alastra. A democracia atual está sob ataque tanto por não conseguir se atualizar com rapidez quanto por sentir o impacto das transformações culturais em curso. A democracia foi vista como trazendo em seu ventre a solução para o problema da violência e da autocracia, como 'o enigma resolvido de todas as constituições' (Marx), como um sistema em que a representação restringe a participação, como uma ficção formalista destinada a encobrir a exploração de classes, como veículo de uma 'tirania da maioria' (Tocqueville), como regime caótico das multidões, como um sistema que somente se realiza sob a forma de uma democracia direta, sem intermediários. Foi ainda pensada como um corpo vivo, destinado a ter um fim, a se esgotar ao longo de sua evolução. Mas as mudanças socioeconômicas e culturais se chocam com déficits de legitimação, governança e representação que comprometem a capacidade de resposta dos sistemas democráticos. As mudanças exigem mais mudanças e clamam por adaptações sistêmicas, que não conseguem ser alcançadas. A sociedade, fragmentada e individualizada, não avança rumo à formação de um "nós coletivo", que apazigue os excessos das postulações parciais (identitárias, ideológicas, econômico-sociais) e forneça um eixo organizacional minimamente consensual. Como disse Habermas, “a razão instrumental típica da modernidade não foi suficiente para instalar formas mais dignas de vida nas sociedades humanas”. Nas sociedades democráticas modernas, não existe mais o povo como unidade ideal, mas apenas o povo dividido em grupos contrapostos e concorrentes.
FCW Cultura Científica – Como a democracia tem sido desafiada?
Marco Aurélio Nogueira – Quanto mais complexas são as sociedades, maior é a pressão sobre a democracia. O sistema democrático corresponde a um padrão de vida. Pode não corresponder perfeitamente, mas está enraizado em um determinado padrão. Quando esse padrão muda, e muda de forma muito acelerada, como está ocorrendo hoje, o sistema democrático sofre. Ele é desafiado basicamente pela mudança rápida e fora de controle do padrão de vida, seja pela nova vida digital e tecnológica, pelas novas formas de trabalho ou pela hipermodernidade. Essas mudanças na estrutura da vida impactam a estrutura da democracia. Em A Democracia Desafiada, usei a metáfora do vulcão que entra em ebulição e desorganiza tudo, espalhando poeira e destroços, matando a terra. O Brasil hoje parece um vulcão, sobretudo se olharmos, por exemplo, para as queimadas, o clima, o problema ambiental e as ameaças à biodiversidade. É claro que isso é uma metáfora, até porque esse vulcão no Brasil, esperamos, será controlado, mas ele está produzindo muitos estragos. Não é que a deterioração ambiental seja o único fator a desafiar a democracia, mas ela desafia no sentido de que obriga os governantes e gestores a chegarem a um acordo a respeito do que deve ser feito para conter a deterioração ambiental ou a emergência climática. E aí esbarramos em um grande problema, porque os acordos hoje estão difíceis, o diálogo entre as partes da sociedade é muito pobre: briga-se muito e dialoga-se pouco. O ideal seria ter um equilíbrio entre a contestação e o consenso, mas isso não está ocorrendo. No Brasil, estamos com uma carência muito grande de acordos desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, ou mesmo antes, nas manifestações de 2013, quando se abriu um buraco de desentendimento na sociedade. Hoje, ninguém mais parece se entender. Posso estar exagerando, mas esse é um grande problema, porque a democracia, para funcionar bem, depende de cidadãos, de valores, de instituições, de organizações e depende de que tudo isso entre em sintonia. Se cada um atirar para um lado, não é só a democracia que será desafiada, será a própria vida. Na questão ambiental, se não houver uma convergência e um consenso, a Terra acaba. Não podemos desenhar políticas climáticas ou ambientais sem um entendimento básico na sociedade. Se o agronegócio for em uma direção, a indústria em outra, ou se ninguém se importar com a quantidade de água que usa, a situação ficará insustentável. Acho que o grande problema, e foi nesse sentido que escrevi A Democracia Desafiada, é entender o desafio à democracia que vem do modo de vida. Ou seja, não é principalmente uma falha do sistema democrático, não é uma falha da democracia em si, até porque, quando a democracia funciona, ela funciona movida por pessoas, líderes, organizações e cidadãos. E, hoje, onde estão os grandes líderes políticos e os grandes estadistas? Eles não aparecem na quantidade que, em tese, seria necessária. O tempo exige uma espécie de reinvenção da política, cujos caminhos não estão claros.
FCW Cultura Científica – O vazio de líderes políticos se soma à própria perda do interesse pela política por boa parte da população?
Marco Aurélio Nogueira – Hoje, os políticos podem viver sem maiores relações com a sociedade e com a vida porque as pessoas se afastaram do sistema democrático. Por que isso aconteceu? Para tentar entender, precisamos olhar para as duas dimensões da equação: as pessoas e a democracia. É provável que a resposta para o problema seja que os cidadãos passaram a não ter suas expectativas acolhidas, e a democracia se fechou em si mesma, perdendo o contato e o diálogo com a sociedade. O resultado foi o crescimento do desinteresse pela política. As pessoas passaram a achar que todo o sistema político precisa ser destruído e perderam a confiança em seus líderes e representantes. Então, viraram as costas; quando protestam, o fazem com desânimo, achando que nada será resolvido, porque, no fundo, acreditam que os políticos não prestam. Cada um tem sua fórmula para atacar a política e o sistema democrático. A raiva e o ressentimento cresceram bastante. O sistema não funciona bem, não dá respostas satisfatórias, porque perdeu o contato com a vida. Ele ficou anacrônico, permaneceu analógico em uma vida que se tornou digital. E, assim, temos o ruído. Antes, no Brasil, tínhamos eleições de outra qualidade, com programas, ideias ou uma construção a respeito do futuro. Já faz algum tempo que não temos mais isso.
FCW Cultura Científica – O candidato não precisa mais ter um projeto político, só precisa da internet e das redes sociais?
Marco Aurélio Nogueira – Em boa medida, é assim mesmo. Candidatos e eleitores valem-se das redes para obter informações, produzir informações e desinformação, explorando as diversas faces da luta entre o bem e o mal. Ah, este aqui é anticomunista, então ele é bom. Aquele outro é autoritário, o outro é não sei o quê, este tem uma suspeita de corrupção, aquele votou de forma direitista e se apresenta como esquerdista. E, com isso, surge uma dicotomia completa, que não acrescenta nada e não dá bons resultados na escolha dos governantes. Sobretudo não ajuda a que se governe bem, pois não favorece a formação de consensos. Numa forma de vida “digitalizada”, como é a nossa, na qual as as condições existenciais estão sob o domínio informático e as redes sociais estão nos conectando em tempo integral, tudo fica fora de lugar. Os sistemas políticos, a democracia, a ideia mesma de partido político, o modo como se faz uma campanha eleitoral, sofrem impactos que exigem uma forte reformulação de ideias e procedimentos.
FCW Cultura Científica – Como fazer para que as novas gerações voltem a se interessar por política a ponto de participarem, atuarem e se tornarem os líderes do futuro?
Marco Aurélio Nogueira – A vida fez com que surgissem obstáculos imprevistos que impediram a democracia de cumprir suas grandes promessas. Assim falou Norberto Bobbio há 40 anos. A democracia não conseguiu criar condições para que os cidadãos se tornassem politicamente educados. Cresceram a apatia política e o desinteresse. No Brasil, por exemplo, durante muitos anos, tivemos no ensino fundamental e médio as disciplinas de Educação Moral e Cívica e Estudos de Problemas Brasileiros. Essas disciplinas poderiam ter funcionado como educação cívica, mas foram instrumentalizadas pela ditadura militar. Por conta disso, hoje não pensamos mais nesses termos. No entanto, acredito que deveria haver um esforço para que o sistema escolar transmitisse aos estudantes alguns elementos de política. Por exemplo, discutindo o que é o Estado, a democracia, a representação, como se governa. A grande maioria dos brasileiros não sabe como se organizam os modelos de governo, o que fazem os poderes e os ministros, ou quais são os valores que constituem a sociedade brasileira. Isso deve ser abordado na escola. Em uma democracia, os cidadãos devem ser capazes de compreender as regras democráticas e se dispor a participar de acordo com elas.
FCW Cultura Científica – Como fazer para educar politicamente os cidadãos?
Marco Aurélio Nogueira – O melhor caminho passa pela educação, pelo sistema escolar. E também por uma melhoria nos sistemas de regulação, especialmente na internet. Acredito que o empobrecimento cívico do cidadão acompanhou a mudança estrutural no modo de vida. No caso das redes sociais, estamos lidando com uma espécie de "bomba de efeito tóxico" que desorganiza a mente da população. As redes sociais funcionam por meio de estímulos imediatos. Alguém escreve algo, e, automaticamente, milhões de pessoas podem ler. Esse é um recurso valioso de comunicação, mas também pode se transformar em um grande problema. As pessoas são constantemente bombardeadas por marketing, merchandising e desinformação, a todo momento, a cada segundo. As redes sociais têm virtudes, como a possibilidade de interagir com outros à distância, o que é ótimo e favorece a socialização. No entanto, elas também nos conectam a uma corrente de alta velocidade, repleta de superinformação e exageros, que se misturam com a desinformação. Parte dos usuários acredita em tudo o que recebe por meio dos aplicativos de comunicação. A educação política terá de se projetar nesses ambientes.
FCW Cultura Científica – O que se pode fazer para reduzir a desinformação? Precisamos de mecanismos de controle mais eficientes para as redes sociais ou de legislação para isso?
Marco Aurélio Nogueira – O padrão de vida que está se estruturando é muito difícil de ser controlado, principalmente porque ele está rompendo com as hierarquias. Uma parte do controle que existia anteriormente era fornecida pelas burocracias. Havia o chefe, o auxiliar, e as pessoas seguiam padrões obrigatórios de rotina e disciplina. Não estou dizendo que isso era bom ou ruim, mas servia para manter certa ordem. O que aconteceu? A burocracia entrou em colapso no mundo. Hoje, é muito difícil manter um sistema burocrático em funcionamento e, no lugar da burocracia, não surgiu outro sistema de controle eficaz. Acho que é possível ter um controle democrático, embora seja algo extremamente complexo. E que pode colidir com a liberdade. Em uma sociedade com muita aceleração, que muda rapidamente, onde há uma quantidade imensa de informação misturada com desinformação, ciência e senso comum, é impossível dizer o que os indivíduos devem ou não consumir. Se pensarmos politicamente, antes quem controlava os cidadãos eram os partidos, por piores que fossem. Os principais deles tinham uma capilaridade que ajudava a manter as pessoas dentro de uma certa ordem. Havia um modelo de conduta na política. Mas, quando os partidos começam a falhar – e hoje vemos falhas gritantes no mundo partidário, tanto no Brasil quanto em outros lugares –, esses espaços de ordem desaparecem. Desaparecem os espaços de educação política e de formação de consensos. Abrem-se vazios que são ocupados pelos mais espertos, pelos mais ágeis ou por aqueles que dominam melhor a tecnologia e as redes sociais. Nesse cenário, a extrema direita tem se mostrado mais astuta do que os democratas e a esquerda. Tem sabido ocupar os espaços e ganhar adesões. Isso não é algo exclusivo do Brasil, mas um fenômeno global, como vemos com o caso de Donald Trump ou com os líderes de direita na Europa. Eles exploram, por exemplo, o problema da imigração, que causa insatisfação e medo nas comunidades, e usam isso para prometer um ataque frontal aos imigrantes. Isso é uma loucura, é como propor uma guerra civil permanente, mas, ainda assim, acaba capturando a atenção, com as pessoas dizendo: "Eu não quero um marroquino, um vietnamita ou um venezuelano na porta da minha casa". O Brasil não enfrenta esse problema, mas se o mundo continuar nesse caminho, isso também poderá acontecer por aqui.
FCW Cultura Científica – Apesar dos muitos e permanentes desafios, a democracia permanecerá?
Marco Aurélio Nogueira – A democracia é um sistema vivo, dinâmico, que interage permanentemente com os demais sistemas sociais. Como qualquer sistema, conhece desajustes e disfunções, que revelam fraquezas e pedem correção. Mas a democracia não entra em crise sozinha, exclusivamente por defeitos intrínsecos ou falhas institucionais. Suas crises sempre exprimem um quadro mais geral de “desarranjo", de mudança estrutural e insatisfação social. A democracia nem sempre produz resultados satisfatórios. Alguns de seus pedaços podem perder funcionalidade e não serem ajustados com rapidez. O sistema não é infalível e não existe para agradar a todos. Sua capacidade de reprodução está apoiada na capacidade de não perder contato com a vida social e os humores cívicos. Enquanto for possível que os cidadãos pelo menos mudem seus governantes por meio de eleições, a democracia estará respirando. A democracia é sempre experimental e dinâmica, o que faz com que seja traduzida de diferentes maneiras. As noções que lhe são mais inerentes (liberdade, poder, povo, representação, participação, soberania) permaneceram abertas a múltiplas interpretações. O que há de crise nas democracias atuais está diretamente associado à representação: a desconfiança e a insatisfação dos cidadãos estão pondo em xeque os mecanismos de escolha dos governantes e legisladores. Uma democracia entra em crise quando perde capacidade de processar os conflitos sociais e os abismos da desigualdade. Em suma, a democracia permanece a desfraldar suas bandeiras mundo afora. Não dá mostras de estar em estado de sofrimento ou crise terminal. Como sempre, porém, mantém-se pedindo cuidados, valorização e proteção.