Democracia, um desejo frágil
A democracia, longe de ser uma promessa eterna, assemelha-se mais a um sonho que precisa de constante renovação. Não basta confiar em fórmulas e discursos do passado; é preciso repensar as bases sobre as quais queremos construir nossa sociedade
Sobre
Em um cenário de enfraquecimento democrático, a extrema direita e o populismo avançam. Pelo mundo, assistimos à ascensão de líderes e partidos que, com slogans simplistas e nostalgia de um “passado ideal” conquistam multidões cansadas e desiludidas.
O enredo se repete como uma cantilena que ecoa em reuniões formais, discursos políticos e salas de aula: a democracia é o destino final, o ápice da civilização. No entanto, essa narrativa tão bem construída parece sempre escapar por entre os dedos. Hoje, mais uma vez, vivemos em um mundo onde a democracia não vai bem.
"A democracia atual está sob ataque tanto por não conseguir se atualizar com rapidez, quanto por sentir o impacto das transformações culturais em curso", diz o professor Marco Aurélio Nogueira no livro A Democracia Desafiada, leitura fundamental para entender a questão, além de inspiração e fundamentação para esta edição da revista FCW Cultura Científica. "A insatisfação se alastra", destaca.
Nogueira é um dos entrevistados nesta edição, ao lado dos professores Carlos Melo, Lilian Rolim e Rosemary Segurado que, juntos, iluminam questões fundamentais sobre o presente e indicam caminhos para o futuro da democracia no Brasil e no mundo.
A insatisfação com a democracia não é passageira, como atesta a segunda eleição de Donald Trump, oito anos após a primeira, mas de uma crise que vem se intensificando há décadas. Para compreender suas raízes, é preciso olhar além dos números e reconhecer que há algo profundamente humano nesse jogo de fragilidades. É como se a democracia estivesse sendo posta à prova em seu próprio palco.
O percentual de pessoas que vivem em democracias plenas tem caído de forma expressiva. Países como Hungria, Polônia, Turquia, Venezuela e até mesmo Brasil e Estados Unidos enfrentam processos de erosão democrática, liderados por figuras e grupos que se proclamam defensores dos "verdadeiros valores" nacionais. Mas o que é isso, afinal, senão o velho truque de manipular o desejo por segurança e pertencimento?
É fato que o mundo mudou: a globalização estreitou distâncias e, paradoxalmente, aprofundou desigualdades. Hoje, o discurso democrático parece esgotado. Os jovens, que deveriam ver a democracia como o farol de uma sociedade igualitária, enxergam-na cada vez mais como um sistema a serviço de poucos, uma peça de teatro em que poucos têm voz. De algum modo, a democracia parece ter perdido parte de seu encanto – aquele misto de desafio e promessa que inspirou gerações a acreditar que a voz de cada um importava.
Aqui reside uma das contradições centrais: como defender a democracia em sociedades profundamente desiguais? É uma pergunta antiga que, paradoxalmente, soa mais atual do que nunca. O economista Thomas Piketty, em seu estudo sobre distribuição de renda e riqueza no século 21, expôs as dinâmicas de concentração econômica, lembrando que, enquanto uma minoria acumula riquezas incomensuráveis, milhões vivem em precariedade permanente.
Em um contexto assim, a ideia de democracia perde força e se torna um luxo distante para quem não tem o mínimo. É como falar de liberdade a quem vive sob o peso da sobrevivência diária. A democracia exige um solo fértil de equidade para se expandir, mas, na ausência disso, torna-se uma promessa vazia. A desigualdade econômica e social abala a crença de que o voto individual tem peso e, pior, afasta os cidadãos do próprio processo democrático.
Não surpreende que, em um cenário de enfraquecimento democrático, a extrema direita e o populismo avancem. Pelo mundo, assistimos à ascensão de líderes e partidos que, com slogans simplistas e uma nostalgia de um “passado ideal”, conquistam multidões cansadas e desiludidas. Esse apego à ilusão de uma era dourada, onde as hierarquias sociais eram claras e as diferenças vistas como ameaça, volta com força, atraindo os descontentes que, por frustração ou incerteza, sentem que a mudança já não lhes pertence.
Os líderes populistas apelam ao medo, oferecendo respostas rápidas e simplistas para problemas complexos. O nacionalismo torna-se uma camisa de força, vestida com orgulho por aqueles que veem o multiculturalismo e o cosmopolitismo como ameaças aos valores familiares e aos "bons costumes". Mas por trás dessa retórica, há uma verdade brutal: esses movimentos prosperam na ausência de oportunidades, na falta de um horizonte econômico e, sobretudo, na erosão da crença de que a democracia pode oferecer uma vida digna.
Nesse teatro de emoções intensas e promessas inflamadas, entram em cena as redes sociais. Celebradas inicialmente como um avanço democrático, pela informação livre e sem intermediários, rapidamente revelaram o outro lado da moeda. As redes amplificam tudo – verdades e mentiras – em um jogo sem regras claras, onde a informação mais ruidosa ou chocante é a que mais chama a atenção. A democracia requer, acima de tudo, um mínimo de verdade compartilhada; sem isso, não há como argumentar, debater ou encontrar pontos de consenso. Nas redes, porém, a verdade é apenas mais um produto que disputa espaço com desinformação e teorias conspiratórias.
A proliferação de notícias falsas e a manipulação de informações fragmentam ainda mais o tecido democrático, criando bolhas de realidade paralelas, onde se cultuam ideias e suspeitas que dificilmente seriam discutidas em um ambiente de diálogo aberto. Enquanto alguns têm acesso a informações confiáveis e discutem temas essenciais, outros se refugiam em crenças conspiratórias, sentindo que apenas eles detêm o "conhecimento verdadeiro". A polarização é o efeito direto dessa dinâmica, reforçando desconfianças e afastando as pessoas do campo democrático de debate.
A democracia, longe de ser uma promessa eterna, assemelha-se mais a um sonho que precisa de constante renovação. Não basta confiar em fórmulas e discursos do passado; é preciso repensar as bases sobre as quais queremos construir nossas sociedades. Seria ingênuo, no entanto, acreditar em soluções simples para problemas tão enraizados. O ponto de partida talvez seja reconhecer nossa responsabilidade coletiva: se a democracia enfrenta uma crise de valores, essa crise também é nossa. Como sociedade, precisamos entender que a democracia não pode ser um jogo de interesses – ela é a estrutura essencial para a convivência. A democracia, como qualquer relação humana, vive de ajustes. Sempre.
A democracia, como se pode ler no livro Nexus - Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial, de Yuval Noah Harari, sofre também, neste segundo decênio do século 21, o desafio de incluir, em seus mecanismos de auto-correção, o protagonismo, cada vez maior, da internet, da rede de computadores e, sobretudo, da IA, entidades digitais que operam por uma transformação radical do mundo que conhecemos.
A preservação do equilíbrio entre verdade e ordem, suporte e objetivo das democracias modernas, constitui, entre outros, um desafio central para a sua sobrevivência.
Carlos Vogt
Editor-chefe