A democracia sofre, mas resiste
Amplamente celebrada como o sistema político que melhor representa os interesses e as vozes dos cidadãos, a democracia enfrenta uma crise de legitimidade, marcada por retrocessos, desigualdades e pela ascensão do extremismo político. Esse cenário desafia as bases sobre as quais a democracia foi construída e se desenvolveu e levanta questões fundamentais sobre a sua sustentação em um mundo cada vez mais interconectado e marcado por profundas divisões econômicas, políticas e sociais
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A democracia moderna foi idealizada como um sistema que promoveria oportunidades iguais para todos, garantindo bem-estar e justiça social. No entanto, a crescente disparidade econômica evidencia que as promessas democráticas de igualdade e inclusão permanecem, em grande medida, não cumpridas.
“Nunca antes nosso futuro foi mais imprevisível, nunca dependemos tanto de forças políticas que podem a qualquer instante fugir das regras do bom senso e do interesse próprio – forças que pareceriam insanas se fossem medidas pelos padrões de séculos anteriores.” O alerta de Hannah Arendt soa mais atual do que nunca, apesar de ter sido publicado em 1951, em Origens do Totalitarismo.
O cenário não se repete, mas os golpes permanecem. Hoje, mais uma vez, a democracia, amplamente celebrada como o sistema político que melhor representa os interesses e as vozes dos cidadãos, enfrenta uma crise de legitimidade, marcada por retrocessos, desigualdades e pela ascensão do extremismo político. Esse cenário desafia as bases sobre as quais a democracia foi construída e se desenvolveu e levanta questões fundamentais sobre a sua sustentação em um mundo cada vez mais interconectado e marcado por profundas divisões econômicas, políticas e sociais.
A nova vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, embora seja, ironicamente, um resultado notável da democracia – ele é o primeiro candidato a vencer em todos os estados-pêndulo em 40 anos –, coloca em risco o sistema democrático no país, a se levar em conta o discurso xenófobo, misógino, racista, preconceituoso e perigoso de sua campanha. Devido à influência econômica e política norte-americana – além de ideológica, mais do que nunca –, essa situação ameaça também as democracias ao redor do mundo, especialmente nas regiões onde ela já não anda tão bem.
Nesta edição de FCW Cultura Científica, exploramos alguns dos principais desafios contemporâneos enfrentados pela democracia, buscando compreender o que coloca em risco sua estrutura e quais caminhos podem ser apontados para garantir sua permanência. Para isso, entrevistamos os professores Carlos Melo, Lilian Rolim, Marco Aurélio Nogueira e Rosemary Segurado.
De acordo com o Democracy Index, da Economist, apenas 8,4% da população mundial vive em democracias plenas, enquanto mais de um terço dos 8,2 bilhões de habitantes vivem sob regimes autoritários. O índice, que avalia 167 países com base em critérios como processos eleitorais, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis, revela uma queda contínua na qualidade democrática global. Países antes considerados modelos de democracia apresentam sinais de enfraquecimento, enquanto regimes autoritários se consolidam e expandem suas influências.
Esta crise democrática tem sido amplamente discutida por teóricos de áreas como Ciências Políticas, Sociologia, Economia, Comunicações e Filosofia. Em O Povo Contra a Democracia, Yascha Mounk, cientista político norte-americano nascido na Alemanha, alerta que as instituições democráticas estão sob ameaça principalmente pelo descontentamento popular, que se traduz em apoio a líderes populistas e autoritários.
O conceito de “democracia iliberal”, popularizado após publicação na revista Foreign Affairs de artigo do jornalista Fareed Zakaria, descreve um sistema em que, embora eleições sejam realizadas, os valores democráticos fundamentais, como a liberdade de imprensa e o respeito aos direitos humanos, são amplamente ignorados. Viktor Orbán, na Hungria, e Recep Tayyip Erdoğan, na Turquia, são exemplos de líderes que personificam essa tendência. Trump já sinalizou que pode seguir esse caminho.
A democracia moderna foi idealizada como um sistema que promoveria oportunidades iguais para todos, garantindo bem-estar e justiça social. No entanto, a crescente disparidade econômica evidencia que as promessas democráticas de igualdade e inclusão permanecem, em grande medida, não cumpridas. Em O Capital no Século XXI, não por surpresa um best-seller, o economista francês Thomas Piketty ressalta como a concentração de riqueza e renda gera uma classe dominante que detém grande poder econômico e político, ampliando as barreiras e prejudicando a constituição de uma democracia verdadeiramente inclusiva.
Essa desigualdade é particularmente visível em sociedades onde a pobreza estrutural impede que os cidadãos menos favorecidos acessem educação de qualidade, saúde e condições de vida dignas. Assim, torna-se legítima a questão: é possível falar de democracia em um contexto de tamanha desigualdade?
A filósofa norte-americana Nancy Fraser argumenta que, sem a integração de uma justiça redistributiva, que lide diretamente com as necessidades econômicas e sociais dos cidadãos, a democracia se torna um ideal vazio, onde apenas uma pequena parcela da população possui voz ativa e real influência sobre o processo político.
Populismo e desilusão com o capitalismo
A frustração com o sistema político atual e a crescente desconfiança nas instituições abriram espaço para o fortalecimento de movimentos de extrema direita em várias partes do mundo. Partidos e líderes que promovem discursos nacionalistas e xenófobos têm conquistado um número expressivo de seguidores, oferecendo alternativas simplistas para questões complexas e criando inimigos comuns que desviam o foco dos verdadeiros problemas.
Em países como Brasil, Estados Unidos e diversas nações europeias, figuras da extrema direita têm mobilizado grandes parcelas da população, frequentemente com discursos contrários a imigrantes, minorias e, de modo geral, às elites políticas tradicionais.
O cientista político holandês Cas Mudde, em Populismo: Uma Brevíssima Introdução, explica que o populismo é um movimento baseado na oposição entre “o povo puro” e “a elite corrupta”. Esse tipo de retórica não apenas fortalece o sectarismo, mas também enfraquece as instituições democráticas ao questionar sua legitimidade e buscar concentrar poder em figuras centralizadoras. Além disso, uma parcela significativa dos eleitores que apoia esses líderes o faz por desilusão com o capitalismo e o liberalismo econômico, que têm falhado em assegurar um padrão de vida digno para todos.
A globalização e as políticas neoliberais impulsionaram uma era de crescimento econômico em muitos países, mas os benefícios desse crescimento não foram distribuídos de maneira equitativa. Em países em desenvolvimento e mesmo nos mais ricos, a classe trabalhadora enfrenta baixos salários, insegurança no emprego e uma rede de proteção social insuficiente.
A crise financeira de 2008 intensificou essa insatisfação, revelando a incapacidade do sistema capitalista de proteger a população em tempos de instabilidade econômica. Além disso, o aumento da inflação e do desemprego nos últimos anos gerou um sentimento de abandono, em que o cidadão comum percebe que, enquanto grandes bancos e empresas são resgatados, ele próprio é deixado à margem.
Autores como o britânico David Harvey, em O Neoliberalismo: História e Implicações, argumentam que a estrutura econômica neoliberal concentra riqueza e aumenta a desigualdade, erodindo a confiança nas democracias que adotam esse modelo. A pandemia de Covid-19, que exacerbou ainda mais as desigualdades, reforçou essa insatisfação e ampliou a adesão a movimentos que questionam o sistema econômico vigente.
Redes sociais, verdade e desinformação
As redes sociais, inicialmente celebradas como ferramentas de democratização da informação, tornaram-se um terreno fértil para a proliferação de desinformação e discursos de ódio. O uso dessas plataformas para manipular eleições e polarizar a opinião pública tem se mostrado uma ameaça real à democracia, como destaca a socióloga turco-americana Zeynep Tufekci em Twitter and Tear Gas. As redes sociais, além de sua capacidade de mobilização, são usadas para espalhar fake news, influenciar resultados eleitorais e promover a radicalização política.
Campanhas de desinformação minam a confiança pública nas instituições e dificultam o alcance de consensos em temas centrais, enfraquecendo o diálogo democrático. Pesquisas do Pew Research Center revelam que a maioria dos usuários de redes sociais acredita já ter sido exposta a fake news, o que contribui para o aumento do ceticismo e para a perda de credibilidade dos veículos tradicionais de mídia.
“A ‘verdade’ tornou-se pessoal, uma questão de sentimento e gosto subjetivo e não muito diferente de uma opinião (‘minha verdade’)”, destacou a historiadora Sophia Rosenfeld em Democracia e verdade: uma breve história.
"Esse viés de confirmação é então reforçado em um ambiente midiático onde escolhemos as fontes de notícias que melhor correspondem às nossas inclinações e descartamos as demais, como Trump ao rotulá-las de 'lixo', 'absurdas' ou, na maioria das vezes, 'notícias falsas' – um termo que hoje significa, basicamente, aquilo que não queremos ouvir. Para todos os slogans bem-sucedidos, o termo 'notícias falsas' carrega verdade suficiente – afinal, as notícias são frequentemente tendenciosas de diversas maneiras – para parecer, se não precisa, ao menos não mais enganosa que qualquer outra coisa”, disse Rosenfeld.
Diante desses desafios, como revitalizar a democracia? Especialistas apontam que as instituições democráticas precisam se adaptar urgentemente, promovendo reformas que ampliem a participação e a transparência. O conceito de democracia participativa, defendida por pensadores como o norte-americano Benjamin Barber em Strong Democracy, sugere que o envolvimento dos cidadãos nas decisões cotidianas poderia renovar a confiança no sistema e fortalecer a representatividade.
Iniciativas como orçamentos participativos, plebiscitos e referendos podem aproximar os cidadãos das decisões políticas, enquanto reformas eleitorais, como o voto proporcional, garantem que minorias tenham uma representação justa. Além disso, políticas de redistribuição de renda e investimentos em saúde e educação são essenciais para combater as desigualdades estruturais que limitam a efetividade da democracia.
No âmbito das redes sociais, a implementação de regulamentações que promovam a responsabilidade e impeçam a disseminação de conteúdos nocivos pode ser uma ferramenta poderosa para conter a manipulação digital. O trabalho de instituições de checagem de fatos, como o FactCheck.org e a Agência Lupa, é essencial para garantir que informações fidedignas prevaleçam no debate público.
A democracia enfrenta um teste de sobrevivência, pressionada por desigualdades, polarização e desinformação. Superar esses desafios exige não apenas reformas institucionais, mas também reflexão sobre os valores e práticas que sustentam o sistema econômico e social.
"A democracia nem sempre produz resultados satisfatórios. Alguns de seus pedaços podem perder funcionalidade e não serem ajustados com rapidez. O sistema não é infalível e não existe para agradar a todos. Sua capacidade de reprodução está apoiada na capacidade de não perder com a vida social e os humores cívicos. Enquanto for possível que os cidadãos pelo menos mudem seus governantes por meio de eleições, a democracia estará respirando", diz o professor Marco Aurélio Nogueira, cujo livro A Democracia Desafiada foi o ponto de partida e é a linha mestra desta edição de FCW Cultura Científica.