Entrevista
Paulo Artaxo
Professor da USP afirma que as mudanças climáticas demonstram uma crise de governança global, que a rota atual de desenvolvimento econômico não pode ser mantida e que o clima do futuro será definido pelas políticas colocadas em prática nesta década crítica para a sobrevivência da humanidade
Sobre
Paulo Eduardo Artaxo Netto é professor titular e chefe do Departamento de Física Aplicada do Instituto de Física da USP. É coordenador do Instituto do Milênio do Experimento LBA, do Programa Fapesp de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais e do Centro de Estudos Amazônia Sustentável da USP.
É membro da Academia Brasileira de Ciências, da World Academy of Sciences (TWAS), da Academia de Ciências do Estado de São Paulo e do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que foi agraciado com o Nobel da Paz de 2007. É membro do Comitê Orientador do Fundo Amazônia, do comitê de gestão do Fundo Nacional do Meio Ambiente e do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. Também integra o Comitê Diretor do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais.
É graduado em Física pela USP (1977), com mestrado em Física Nuclear pela USP (1980), doutorado em Física Atmosférica pela USP (1985) e teve passagens pela NASA (Estados Unidos), Universidade de Antuérpia (Bélgica), Universidade de Lund (Suécia) e Universidade Harvard (Estados Unidos).
Recebeu voto de aplauso do Senado Brasileiro pelo trabalho científico em meio ambiente na Amazônia, em 2004. Foi eleito, em 2006, fellow da American Association for the Advancement of Science. Entre várias distinções, recebeu, em 2007, o prêmio de Ciências da Terra da TWAS e o Prêmio Dorothy Stang, da Câmara Municipal de São Paulo. Em 2016, recebeu o Prêmio Almirante Álvaro Alberto, outorgado pelo CNPq, Marinha, MCTI e Fundação Conrado Wessel. Em 2021, recebeu o Prêmio Confap de Ciência e Tecnologia. Em 2024, recebeu o Prêmio PIFI da Academia Chinesa de Ciências.
FCW Cultura Científica – As mudanças climáticas são um dos maiores desafios da humanidade?
Paulo Artaxo – As mudanças climáticas devem ser vistas em uma perspectiva mais ampla. A humanidade está passando por um período delicado de transição, enfrentando questões como a perda da biodiversidade e as desigualdades socioeconômicas entre países, bem como dentro de países, regiões e cidades. Há uma grande polarização política, estamos convivendo com duas guerras que jamais deveriam estar acontecendo, milhões de pessoas estão morrendo devido à poluição do ar e milhões enfrentam a fome na África e na América Latina. A humanidade está em clara e forte crise. A crise climática é um desses aspectos e reflete o esgotamento do modelo econômico que predominou desde o início do século passado — um modelo baseado na concentração de renda, no esgotamento dos recursos naturais e na superexploração do trabalho em benefício do capital. Tudo isso levou à situação insustentável que vivemos atualmente. Precisamos traçar um caminho para sair dessa crise, que é mais do que uma crise climática, é uma crise pela sobrevivência da própria espécie humana.
FCW Cultura Científica – Desde o primeiro relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), em 1990, por que os países pouco fizeram e continuam a alimentar o aquecimento do planeta?
Paulo Artaxo – As mudanças climáticas mostram claramente que temos uma crise de governança global. Isso pode ser visto de várias maneiras, por exemplo, temos duas guerras sangrentas que estão acontecendo sem qualquer possibilidade de a ONU fazer prevalecer as leis internacionais. O mesmo ocorre com as mudanças climáticas. Os mecanismos atuais nas Nações Unidas são incapazes de proporcionar uma governança ambiental e climática mínima para o planeta. Temos um sistema que foi desenhado no pós-guerra para favorecer países que venceram a guerra em detrimento de outros e nada que não seja economicamente interessante para esses países que dominam as Nações Unidas é implementado como agenda global, incluindo a redução nas emissões de gases de efeito estufa. Desde a Conferência de Estocolmo, em 1972, a ciência tem dado um recado muito claro de que temos que acabar com a queima de combustíveis fósseis em todo o mundo. No entanto, meio século depois, estamos observando um aumento nas emissões de 2% ao ano, com 60 bilhões de toneladas de gás de efeito estufa lançados anualmente na atmosfera. Por que a ONU não consegue estruturar uma política que limite as emissões? Porque os interesses das principais empresas afetadas, que são produtores de petróleo e de energia dos países desenvolvidos, basicamente não permitem. Essas empresas controlam os governos de modo a impedir a implementação de políticas que reduzam seu lucro a curto prazo. Elas não têm uma visão de longo prazo nem de benefícios para a humanidade como um todo. Elas olham exclusivamente para o interesse de seus acionistas no curto prazo e isso está trazendo a emergência climática que observamos hoje, com milhares de pessoas morrendo em ondas de calor, milhões passando fome por dificuldade de acesso a alimentos e assim por diante. Então, é uma crise de governança global, não é somente uma crise climática. Precisamos mudar a maneira como o nosso planeta é administrado.
FCW Cultura Científica – No âmbito climático, qual tem sido o papel do Brasil e o que o país pode fazer para enfrentar a crise?
Paulo Artaxo – O Brasil tem vantagens estratégicas enormes em relação às mudanças climáticas globais, mas também tem vulnerabilidades significativas. Precisamos de governos que equilibrem essas vantagens, implementando políticas que as aproveitem e minimizem as vulnerabilidades. Quais são as nossas vantagens? Por exemplo, 52% das nossas emissões de gases de efeito estufa estão associadas ao desmatamento da Amazônia. Embora isso represente uma vulnerabilidade, também é uma vantagem estratégica significativa, pois nenhum outro país pode reduzir suas emissões tão rapidamente, com custo mínimo e grandes benefícios adicionais para a manutenção dos serviços ecossistêmicos. Outro exemplo é o potencial do Brasil para geração de energia solar e eólica, que, se explorado adequadamente, pode transformar o país em uma potência energética sustentável nas próximas décadas. Temos também um potencial de sequestro de carbono que nenhuma outra nação possui, devido à localização tropical e às áreas desmatadas e abandonadas, que têm grande potencial para recuperação e sequestro de carbono. Por último, temos o maior programa de produção de biocombustíveis, nenhum outro país sequer chega perto do Brasil. São vantagens estratégicas enormes. Por outro lado, temos um Congresso que parece só enxergar a questão dos lucros dos setores que os congressistas representam, isso no curtíssimo prazo e sem pensar na sustentabilidade do agronegócio, por exemplo. Um problema importante que já estamos observando é a queda da produtividade agrícola no Brasil Central causada pela redução na precipitação. É uma vulnerabilidade enorme, porque uma economia baseada no agronegócio pode não ser tão viável já nas próximas décadas e isso é uma questão fundamental na qual o país precisa começar a pensar. Veja o caso do Rio Grande do Sul, onde muitas das áreas agrícolas foram destruídas com as enchentes deste ano. Se eventos climáticos extremos como esse acontecerem com frequência, implicará em um custo gigantesco para o país. O Brasil tem que redesenhar sua política econômica ambiental e climática para atender a esses novos desafios, que já estão em cima da mesa e vão se intensificar no futuro próximo.
FCW Cultura Científica – A cada dia, é menos provável que o aumento na temperatura média global até o fim do século se limite ao 1,5 °C indicado pelo Acordo de Paris. As emissões de gases estufa não estão diminuindo e os efeitos das emissões de hoje vão permanecer por muito tempo. Poderia explicar o efeito cumulativo do CO2 e de outros gases?
Paulo Artaxo – É importante que a população brasileira como um todo e a população mundial percebam que não existe qualquer possibilidade de limitar o aquecimento global neste século a 1,5 °C ou mesmo a 2 °C com as atuais taxas de emissões e com os compromissos dos países no Acordo de Paris. A ciência mostra claramente que estamos indo para uma trajetória de aumento de 3 °C. Isso significa que em países continentais e tropicais como o Brasil, o aumento na temperatura prevista é da ordem de 4 °C a 4,5 °C. Além disso, com o aumento da urbanização e do efeito das ilhas de calor, considerando que 80% da população mundial viverá em cidades em 2050, o aumento ainda será ampliado em pelo menos mais 1 °C, ou seja, estamos falando de um aumento da temperatura nas cidades da ordem de 5 °C a 5,5 °C. Isso trará impactos gigantescos sobre a saúde da população, sobre as atividades econômicas e sobre a sustentabilidade da maior parte das indústrias atuais. Essas são questões que precisam ser pensadas nesta década, porque o IPCC coloca muito claramente que o clima será definido pelas políticas desta década crítica das mudanças climáticas. Os eventos climáticos extremos se somam a esta situação de aumento gradual da temperatura. O mais recente relatório do IPCC aponta que eventos climáticos como as fortes chuvas no Rio Grande do Sul ou a seca na Amazônia, que ocorriam uma vez a cada 50 anos, em um planeta 3 °C mais quente serão quase 40 vezes mais frequentes e cinco vezes mais intensos. Isso é um alerta claro que a ciência dá para os nossos governantes e para as empresas de que a rota atual de desenvolvimento econômico não tem futuro.
FCW Cultura Científica – Qual é a importância do net zero, a emissão zero de gases de efeito estufa até 2050, e por que o destino do mundo pode depender disso?
Paulo Artaxo – Esse é outro ponto muito importante. O Brasil e vários países desenvolvidos têm a ambição de chegar à emissão líquida zero em 2050, a Alemanha em 2035, a China em 2060 e assim por diante. Mas a grande questão é a seguinte: hoje, as emissões associadas com a produção de alimentos globais correspondem a 30% do total de gases de efeito estufa. O problema é o que fazer com esses 30% de emissões, que ainda vão crescer com o tempo. Estamos falando em alimentos, então como vamos mitigar essas emissões? Não há mágica nessa questão, não há mecanismos de captura de carbono viáveis tecnológica e economicamente para capturar 30% do total das emissões atuais, que representam cerca de 20 bilhões de toneladas de CO2 equivalente. Não há qualquer possibilidade de chegar a emissões zero em 2050 ou em qualquer período próximo disso. Para que isso ocorra, além de reduzir as emissões de gases de efeito estufa, temos que inventar uma nova agricultura de baixo carbono.
FCW Cultura Científica – Na questão das emissões, qual é o papel dos aerossóis, um de seus principais objetos de pesquisa?
Paulo Artaxo – Os aerossóis representam uma questão fundamental, pois quando falamos que o aquecimento médio global já chegou a 1,4 °C, é importante perceber que aí está incluído o papel dos aerossóis no resfriamento do planeta. Os aerossóis são partículas minúsculas, com cerca de 500 nanômetros, que ficam em suspensão na atmosfera e refletem de volta para o espaço uma parte da radiação solar que aquece o planeta. Esse resfriamento atualmente é calculado pelos modelos climáticos como sendo da ordem de 0,5 °C. O que significa isso? Significa que, na prática, o aquecimento dos gases de efeito estufa não é somente de 1,4 °C, mas já chegou a 1,9 °C, descontado o resfriamento dos aerossóis que estão sendo removidos da atmosfera. Isso porque, ao diminuir a queima de carvão, a queima da biomassa da Amazônia ou a queima de petróleo para produção de energia, diminuem as emissões de aerossóis. Ao eletrificar a frota de transporte global, eliminamos milhões de automóveis que hoje emitem partículas de aerossóis para atmosfera. Isso é ótimo, pois diminui a poluição, mas faz com que aquele 0,5 °C que está escondido do aquecimento global apareça e apareça rapidamente. Isso vai fazer com que o aquecimento se acelere nas próximas décadas pela limpeza da atmosfera dos aerossóis que hoje são emitidos.
FCW Cultura Científica – No artigo “Mudanças climáticas nos forçarão a repensar e construir uma sociedade mais sustentável e justa”, o senhor comenta a catástrofe ocorrida no Rio Grande do Sul este ano e destaca que temos que nos adaptar ao novo clima e que a adaptação requer reforços e esforços de todos os níveis. Por que muitas pessoas ainda não dão a devida importância às mudanças climáticas?
Paulo Artaxo – É importante perceber que o clima já mudou e vai continuar mudando. Catástrofes como as enchentes no Rio Grande do Sul, secas na Amazônia, chuvas intensas em diversos estados brasileiros, incêndios em vários países e tantos outros exemplos mostram que temos que trabalhar na adaptação ao novo clima. Essa adaptação não pode ser feita no planeta como um todo, ela é muito local, deve ser feita em cada município. Os municípios precisam identificar suas vulnerabilidades e a melhor maneira de se adaptar ao novo clima. É uma tarefa urgente se quisermos proteger a população, principalmente a de baixa renda e que vive em locais com mais risco, de um aumento enorme de efeitos climáticos extremos, de inundações, de grandes secas. E o Brasil, por ser um país tropical, é muito mais vulnerável a tudo isso do que, por exemplo, Suécia, Noruega, Alemanha ou outros países de clima temperado.
FCW Cultura Científica – O que podemos e devemos fazer para contribuir com a redução da curva de aumento na temperatura global?
Paulo Artaxo – Precisamos principalmente de políticas públicas abrangentes. O papel individual de cada um dos 8 bilhões de seres humanos é pequeno pela gravidade que já chegamos na questão das mudanças climáticas globais. Você pode ir trabalhar de bicicleta, o que será ótimo para sua saúde, mas em uma cidade como São Paulo, com mais de 8 milhões de automóveis, o seu esforço será muito nobre, mas não ajudará muito na redução de emissões. Precisamos de políticas públicas consequentes em todos os níveis. No nível municipal, melhorando a matriz de transporte e atuando no melhor processamento dos resíduos sólidos, entre outros pontos. No nível estadual, melhorando a administração das bacias hidrográficas, por exemplo. No nível federal, reduzindo as emissões de gases de efeito estufa nas indústrias, na geração de eletricidade, na redução das queimadas e assim por diante. Precisamos de políticas públicas da sociedade como um todo e uma maneira fundamental de mudar as políticas públicas é prestar mais atenção no seu voto. Verificar quais compromissos políticos o seu candidato tem em relação à sustentabilidade da sua cidade, do seu estado, do país e do planeta como um todo. Desse modo, poderemos dar uma contribuição efetiva na mudança da postura dos governos para construir uma sociedade mais sustentável.