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Entrevista

Patrícia Morellato

Professora da Unesp explica como as mudanças climáticas impactam a biodiversidade, afetando o florescimento, a germinação e a sobrevivência de plantas, e como conciliar o uso da terra com a diminuição nas emissões. Morellato fala também sobre os objetivos do novo Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Mudanças Climáticas

Sobre

Leonor Patrícia Cerdeira Morellato é professora titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e diretora do novo Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Mudanças Climáticas (CBioClima). Integra a coordenação do Programa Fapesp de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais e o Comitê Internacional de Fenologia. Participou do Grupo de Trabalho II (WGII) do Quarto Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2007.

Foi professora visitante nas universidades da Califórnia em Davis, de Alberta, Técnica de Munique, Cornell, de Avignon e de Sevilha. Foi membro do comitê assessor da Capes e membro do comitê diretor da Associação de Biologia Tropical e Conservação.

Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo, mestrado e doutorado em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas. Sua linha de pesquisa na área de Ecologia e Botânica, atuando principalmente em ecologia temporal, fenologia de vegetações tropicais e o monitoramento de respostas às mudanças climáticas, e consequências para a reprodução, polinização, dispersão de sementes (desacoplamentos temporais e a evolução de padrões temporais), serviços ecossistêmicos e conservação da biodiversidade. Estabeleceu (2012) e coordena a primeira rede de monitoramento de fenologia tropical no Brasil usando câmeras digitais (fenocâmeras). É a coordenadora no Brasil da rede Brasil-África (PhenoChange) de monitoramento fenológico.

É editora associada das revistas "Flora" e "Global Ecology and Biogeography". Recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura em 1993, na área de Ciências Naturais, pela organização no livro "História Natural da Serra do Japi" (Editora da Unicamp).

FCW Cultura Científica – Como a crise da biodiversidade é impactada pelas mudanças climáticas?

Patrícia Morellato – Mudanças climáticas e a crise da biodiversidade estão profundamente ligadas e a ciência tem dado ênfase cada vez maior às relações entre essas duas questões. Os painéis das Nações Unidas de biodiversidade, IPBES, e o de mudanças climáticas, IPCC, que antes pouco conversavam, têm trabalhado em conjunto e divulgaram um relatório no qual destacam a importância de se estudar essas conexões. A conservação da biodiversidade é colocada como um dos fatores chaves no combate às mudanças do clima. Como podemos entender esses efeitos? Os seres vivos vivem em ciclos, que estão atrelados ao clima. Esses ciclos são determinados pelo clima de forma mais óbvia nas plantas de cultura, que têm momentos de plantio e de colheita. Nas regiões com estações marcantes temos momentos para a floração de certas espécies, como os pessegueiros no Japão ou os ipês no Brasil. Isso é muito intuitivo e essa fenologia, esses eventos recorrentes no ciclo de vida de plantas e animais, sempre acompanhou a humanidade. É algo que chama a atenção há muito tempo e depois foi acentuado por questões de alimentação, especialmente quando o homem se tornou sedentário. Quando a humanidade passou a plantar, entendeu que o ciclo da vegetação está ligado ao ciclo do clima. Mesmo antes já entendia, ao acompanhar o ciclo das flores e das frutas que colhia. Hoje em dia, quando alguém vai à feira ou ao mercado, é comum evitar produtos mais caros por não estarem na época daquelas plantas frutificarem. Temos a época do morango, do pêssego e assim por diante, mas quando o clima muda, a produção das verduras e frutas também muda. Os animais também respondem ao clima, como as aves que migram ou os sapos que coaxam mais na estação úmida do que na estação seca. A biota responde ao clima e, se esse clima muda, naturalmente vai afetar suas respostas. Nas plantas, como elas não se movem e não podem migrar como os animais, essa resposta pode ser observada de forma bastante clara e simples pela observação da sua fenologia. A fenologia é considerada a forma mais simples e eficiente de monitorar as respostas da biota, para entender o que está acontecendo como consequência das mudanças climáticas. Quando você tem uma alteração no clima, os nichos ambientais (temporais) que as espécies ocupam são alterados, o que pode ter diversos efeitos nas espécies, tanto vegetais quanto animais, modificando a sua época reprodutiva. Pode afetar a reprodução, o sucesso reprodutivo (produção de frutos e sementes nas plantas) e até sua sobrevivência local. As espécies (e seus indivíduos) estão coordenadas umas com as outras, respondendo aos sinais do clima. As alterações no clima, especialmente devido às mudanças climáticas, promovem, em muitos casos, um desacoplamento entre indivíduos e espécies. A alteração no clima, consequentemente, desacopla interações, que podem ser da época de floração com o polinizador ou, no caso do aquecimento do mar, entre as baleias, que chegam a um local e não encontram mais os recursos que normalmente estavam ali, ou tem menos recursos e vão produzir menos leite para alimentar os filhotes. Toda essa interligação é muito forte, mas as pessoas têm dificuldade de ver algo que às vezes está claro mas em outros não é tão óbvio ou visível, como os desacoplamentos entre flores e polinizadores. 


FCW Cultura Científica – Como as mudanças climáticas afetam o ciclo de reprodução das espécies vegetais? 

Patrícia Morellato – As plantas têm um gatilho para florescer, que é normalmente o clima, a precipitação, a temperatura ou o início do ciclo de produção de folhas. Vamos supor que seja a primeira chuva depois da estação seca que estimula a floração – um gatilho muito comum nas regiões tropicais – que ocorre com o café, por exemplo. Em um ano mais seco, esse gatilho vem mais tarde, mas, no ano seguinte, volta para o ponto anterior, porque foi uma mudança eventual. Com a mudança climática, estamos diante de um fator maior do que a variação interanual e, com o tempo, a planta não retorna ao ponto inicial de resposta. A temperatura ou a época em que costumava ocorrer a chuva que dava ignição para a planta florescer não ocorrerão mais naquele período, causando um desacoplamento temporal e perturbando de forma muito mais forte essas interações. Sempre tivemos mudanças de ciclos, um ano mais seco, outro no qual chove mais, mas com a mudança climática induzida pelo homem a curva está subindo, cada vez mais distante do patamar original. O 1,5 °C de aumento na temperatura média global, que praticamente já alcançamos, muda todas as interações. O que isso significa? Que algumas espécies de plantas conseguirão florescer mais tarde, mas provavelmente não terão mais o seu polinizador quando isso ocorrer, e podem não produzir muitos frutos. Alternativamente, produzir o fruto – vamos supor um fruto como o café, um fruto zoocórico, isto é, disperso por um animal – ocorrerá em outra época. Aquele animal que comia o fruto tem outras ofertas, pois não sobrevive de um tipo só e pode não comer o novo fruto e dispersar suas sementes. Então, essa planta que agora frutifica em outra época, talvez não seja tão visitada, tão utilizada pelos frugívoros, e haverá um problema de dispersão de sementes, um problema para germinar. Se, ao dispersar, não cair no local adequado, não irá germinar e produzir outro pé de café. Esse é um efeito devastador da mudança do clima, que é difícil de as pessoas entenderem. Porque quando se fala do ponto de não retorno, não é porque uma planta não terá capacidade de se regenerar, é porque o nicho (condições do ambiente) ao qual ela está habituada está se afastando cada vez mais daquele ao qual ela está adaptada e ao qual respondia. Isso é um problema grave que precisa ser estudado, quais espécies têm mais resposta ou quantas têm mais resiliência para adaptar sua resposta às mudanças do clima.



FCW Cultura Científica – Em um artigo recente publicado no periódico Annals of Botany, em colaboração com cientistas da Espanha, vocês investigaram a relação entre o aumento na temperatura e o ciclo de desenvolvimento de uma planta mediterrânea. Quais foram suas conclusões?

Patrícia Morellato – A primeira conclusão deste trabalho foi demonstrar um panorama da resposta reprodutiva de plantas na região mediterrânea em 40 anos (décadas de 1980 a 2020). As espécies estão avançando tanto a época de início da floração quanto mudando a sua duração. A floração das plantas está sendo adiantada porque a temperatura vem se elevando e o inverno terminando antes. A primavera se antecipa, com o gatilho precoce da elevação da temperatura, um fenômeno já constatado nas regiões temperadas do hemisfério Norte, onde foi feita a pesquisa e onde usualmente há uma diversidade menor de plantas, apesar de a vegetação mediterrânea ser altamente diversa. Verificamos que, além de ter ocorrido um adiantamento na floração, muitas espécies mudaram a duração de sua floração, algo ainda não documentado. Muitas são espécies bastante importantes naquela vegetação mediterrânea, geralmente as mais abundantes ou que têm maior cobertura. O ciclo de vida da planta não é só quando vem a primeira flor, é quanto tempo essa flor dura e quando termina. Nós analisamos esse ciclo completo. Finalmente, observamos que houve uma diferença também na sobreposição temporal das espécies nesses 40 anos. As espécies não estão mais sobrepostas ou acopladas como na década de 1980. Tem espécies que se desacoplaram no tempo e tem espécies que se acoplaram com espécies diferentes nos anos 2020, ou seja, mudou a sobreposição entre espécies, as interações entre elas se alteraram. A organização temporal da comunidade foi alterada e está relacionada às mudanças do clima, principalmente à elevação das temperaturas. Agora, temos espécies naquela região mediterrânea muito rica que estão “extrapolando” o tempo de floração, ficam muito tempo florescendo, e isso tem efeito naqueles com quem passaram a coflorescer, com quem passaram a ficar acopladas. Elas passam, por exemplo, a compartilhar e potencialmente competir por polinizadores. A comunidade original se altera, mudam as ofertas de flores, isso afeta a fauna de abelhas, por exemplo, que são os principais polinizadores, e pode afetar as plantas de culturas. Não sabemos o quanto está afetando a reprodução, mas certamente terá um reflexo nas culturas agrícolas, que dependem de polinizadores cuja fonte frequentemente é essa vegetação natural que está se alterando. Estamos fazendo um estudo semelhante no Brasil, que será publicado em breve, indicando alterações nas plantas que dependem de polinizadores para a reprodução, relacionadas às mudanças do clima e elevação das temperaturas. 


FCW Cultura Científica – No caso do Brasil, como o aquecimento global e as mudanças no clima afetam os biomas?

Patrícia Morellato – Aqui, a mudança do clima está muito relacionada com o aumento na duração e intensidade da estação seca e dos eventos extremos. No Brasil, não temos uma estação de dormência, como o inverno no hemisfério Norte, mas tempos uma estação mais seca que muitas vezes restringe o crescimento das plantas. Na Caatinga, temos um período muito restritivo quando as árvores estão sem folhas, no caso do Cerrado há uma estação menos efetiva e a Mata Atlântica não tem uma estação seca restritiva. Quando passamos a ter mudanças no clima, a estação de produção de folhas e a de queda de folhas passam a se alterar ao longo do tempo. Esse é um tipo de estudo que fazemos. Usamos câmeras digitais para fotografar a vegetação o dia inteiro, todos os dias, e obtemos índices de verdejamento para analisar alterações no nível da espécie, da comunidade e do sistema. Com o aumento da estação seca, o período de produção de folhas se reduz, a perda de folhas (deciduidade) e período sem folhas aumenta, diminuindo a captação de carbono da planta. Quando falamos de biomas extensos como a Amazônia, isso pode alterar tudo, porque se uma planta está produzindo menos folhas, ela também está evapotranspirando menos. Com isso, lança menos umidade no ar, menos vapor de água, o que produz menos chuva, porque a chuva da Amazônia tem muito a ver com a dinâmica da fotossíntese e respiração das plantas. As nuvens e a chuva da Amazônia não são resultado apenas do rio, mas principalmente da ciclagem feita pela vegetação. É uma umidade que depois alimenta locais muito distantes, por isso falamos que se a Amazônia estiver mais seca vai chover menos no Cerrado. Ao retirar a cobertura vegetal na Amazônia, com o desmatamento e degradação do bioma, teremos menos chuva. Conservar a Amazônia não é só conservar uma floresta, o que já seria muito importante, mas conservar toda a dinâmica dos sistemas que estão a ela associados, por exemplo, o Cerrado. Para o produtor de soja é difícil entender isso, mas é esse o cenário em que nos encontramos. 



FCW Cultura Científica – Em um cenário, cada vez mais distante, em que se consiga reduzir o aumento da temperatura, os biomas e ecossistemas conseguirão se recuperar? Quanto tempo levaria para isso? 

Patrícia Morellato – Estão sendo feitas pesquisas para entender a determinação genética, a adaptabilidade, a variabilidade e a plasticidade das espécies em relação à sua adaptação às mudanças climáticas de modo a determinar como elas poderão se recuperar. Pode ser que algumas espécies sejam localmente extintas e outras permaneçam, o que levaria a mudanças que talvez não permitam retornar à forma original ou somente voltar em um tempo evolutivo muito longo. De qualquer maneira, isso depende de uma combinação de fatores. Se conseguirmos parar com a emissão de gases de efeito estufa, acho que poderemos recuperar bastante. Como se costuma dizer, a natureza acha o caminho. Algumas espécies de plantas têm larga adaptabilidade, podem se adaptar a diferentes extremos climáticos e sobreviver. Outras espécies têm um nicho muito pequeno e são as mais ameaçadas, porque se aquele nicho muda, elas podem rapidamente não conseguir se adaptar.


FCW Cultura Científica – Como surgiu a ideia de instituir o Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Mudanças Climáticas (CBioClima), o primeiro Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiado pela Fapesp na Unesp?

Patrícia Morellato – Temos um grupo aqui no campus de Rio Claro da Unesp que sempre foi muito forte em estudos sobre biodiversidade. Não participamos da chamada anterior do programa Cepid, em 2011, mas quando abriu a nova, em 2021, vimos que era a oportunidade de iniciar um centro que fizesse a convergência desses dois temas fundamentais na atualidade que são biodiversidade e mudanças climáticas. Apresentamos a proposta do CBioClima, que foi aprovada, tendo como missão ser um observatório da biodiversidade frente às alterações do clima. No CBioClima, vamos investigar o quanto a perda na biodiversidade está associada e pode piorar com as mudanças no clima. Queremos estudar as sinergias, por exemplo, de um clima que está ficando cada vez mais seco, com maior possibilidade de incêndios, ou redução nas estações de crescimento, produtividade, biomassa e a dinâmica de fontes e sumidouros de carbono. Estamos trabalhando também do ponto de vista de serviços ecossistêmicos e da conservação da biodiversidade, da difusão do conhecimento e da inovação. Estamos criando parcerias, e este primeiro ano foi principalmente de estabelecimento do CBioClima e sua estrutura administrativa. Porém, também publicamos mais de 40 artigos científicos, difundimos de formas variadas a ciência que fazemos em nossas mídias e publicamos livros. É um grupo muito produtivo. Estamos agregando muita gente, temos atraído pós-doutorandos do Brasil e de outros países, aumentou o interesse dos estudantes em fazer mestrado e doutorado, está reverberando por toda a comunidade, tudo isso no primeiro ano. 


FCW Cultura Científica – Quais são os focos do CBioClima?

Patrícia Morellato – Temos quatro frentes principais, que chamamos de pacotes de trabalho. A primeira é a produção de sínteses e revisões, open science e disponibilidade de dados. Precisamos saber o que já foi feito e o que não foi, de modo a poder avançar o conhecimento. Ecologia é uma ciência de big data (muitos dados), assim como a mudança climática é uma ciência de big data. A segunda frente é o que chamamos de next-generation natural history, que usa novas tecnologias para entender onde estão as espécies, os efeitos das mudanças climáticas e o que está acontecendo, se as espécies estão sumindo, se estão restritas ou como estão se adaptando. Nesse pacote, trabalhamos com todos os tipos de técnicas, principalmente as moleculares, para monitorar a ecologia e evolução da biodiversidade. Investigamos também outras alterações humanas. Queremos entender, por exemplo, como os agrotóxicos e insumos afetam as abelhas, se estão alterando a genômica ou mesmo o microbioma intestinal das abelhas, que tem muito a ver com o que ela vai produzir de mel ou sua capacidade de polinizar. O terceiro pacote envolve a área que chamamos de dimensões da biodiversidade, onde estudamos as interações da biota. É nesse campo promissor que estudamos os desacoplamentos temporais nas espécies vegetais e animais. Uma planta para se reproduzir precisa que todos os seus exemplares estejam em flor na mesma época. Se houver desacoplamento, elas se tornam menos sincrônicas e podem se reproduzir de forma mais eficiente, produzir menos frutos etc. Os polinizadores não vão achar a planta e vão procurar outra espécie. Quando se perde uma interação, a espécie pode até ser substituída, mas a interação pode ser que não seja, e essa é uma perda invisível mas que pode impactar severamente os ecossistemas. Ou uma espécie está lá, mas não interage mais com a outra como antes, pois a conexão foi perdida. Esse é um efeito sinérgico das mudanças climáticas. Estudamos também efeitos da defaunação e alterações da paisagem na biodiversidade e interações com as mudanças no clima. A quarta frente reúne trabalhos sobre microbiota e soluções sustentáveis, porque hoje muitas das soluções que podemos encontrar estão relacionadas a microbioma e solos. No CBioClima, queremos ter também um forte componente de inovação, além de educação e disseminação, porque a desinformação ficou muito forte e muito patente nos últimos anos. Nós, cientistas, precisamos nos aproximar mais do público geral, procurar mais os jornalistas, criar material que ajude a divulgar os resultados das pesquisas e esclarecer a sociedade do que está acontecendo. Estamos fazendo isso de várias maneiras, ampliando as mídias, já temos website e Instagram. Vamos fazer materiais para escolas, que já estão nos procurando. Educação é fundamental e queremos contribuir com materiais que permitam aos estudantes conhecer, por exemplo, o que é mudança climática, a nossa adaptabilidade frente às mudanças no clima e como podemos contribuir para a redução no aquecimento global. 


FCW Cultura Científica – Como conciliar o uso da terra – principalmente para a produção de alimentos – com a diminuição das emissões de modo que tenhamos, por exemplo, emissões zero até 2050? 

Patrícia Morellato – Acho que o Brasil tem que mudar a forma como trata a agricultura e a pecuária, pois as mudanças no uso do solo são as maiores fontes de emissões no Brasil. Temos, de um lado, o modelo da agricultura familiar, de um pequeno produtor que trabalha em um sistema socialmente mais sustentável, mais justo e que alimenta mais pessoas. Do outro lado, temos a agricultura extensiva, que é muito estimulada. O Brasil tem que produzir açúcar e álcool? Então o país passa a apoiar fortemente a produção de cana em áreas muito extensas, com poucos donos, que ganham muito dinheiro, a distribuição da renda é muito ruim e a devastação ambiental é muito grande. Com a cana tem sido assim desde o período colonial, primeiro com o açúcar e depois com o etanol. Outros exemplo são a soja e pecuária. Por que precisamos produzir soja com esse nível de devastação? É preciso efetivamente devastar florestas para a produção de carne? Temos que redesenhar esse modelo de agricultura, tem que haver uma adequação, que seja uma limitação de tamanho de propriedade ou de área de cultura contínua – monotonia da paisagem –, porque tudo isso prejudica os ecossistemas, o clima e finalmente, o homem e seu bem estar. A ciência tem oferecido soluções sustentáveis ecológica e economicamente. Precisamos de mais políticas públicas nesse sentido. Temos os nossos principais lençóis freáticos no Cerrado e se deixarmos áreas gigantescas de cultura em que se destrói toda a vegetação natural, não haverá um uso sustentável, as nascentes e reservas de água serão afetadas, e a produção agrícola extensiva não vai se sustentar. Se quisermos ter um país mais forte, temos que conciliar esses fatores, temos que ter regras, ter compromissos e buscar a sustentabilidade. Os grandes produtores têm um débito ambiental com o país e devem pagar de alguma forma, seja reflorestando ou melhorando a questão ambiental, na proporção em que as áreas são cultivadas ou no uso de melhores insumos, que não cheguem aos rios e não afetem as vegetações naturais e a fauna. Precisamos de políticas públicas que tragam equilíbrio para a produção em larga escala e que agreguem mais benefício social. Os grandes produtores precisam investir mais em conservar a parte natural, que tem um serviço ecossistêmico com valor fundamental, seja de polinização ou de dispersão de sementes, cultural ou de conhecimento tradicional, que ainda precisamos entender e respeitar. Se conseguirmos incorporar isso, talvez consigamos, falando bem otimisticamente, melhorar esse panorama. Acho que as pessoas têm que ver as coisas por outro ponto de vista, de um ponto de vista mais inteligente e mais saudável para você e o planeta. Tudo está concatenado: a mudança do clima, a preservação da biodiversidade, a produção e os serviços ecossistêmicos, com alimentos melhores, melhor saúde e melhor bem-estar e conforto para todos, num planeta sustentável e mais feliz. 


 








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Revista FCW Cultura Científica v. 2 n.3 Setembro - Novembro 2024

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