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Entrevista

Jose Marengo

Em um cenário em que os extremos climáticos estão se tornando cada vez mais frequentes, coordenador do Cemaden destaca a importância dos sistemas de previsão e alerta e de preparação da população, a necessidade de valorizar a Defesa Civil e o que fazer para tentar reduzir a ocorrência de desastres como a enchente no Rio Grande do Sul

Sobre

Jose Antonio Marengo Orsini é pesquisador titular e coordenador geral do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), onde trabalha com eventos extremos, desastres naturais e redução de risco a desastres. É coordenador do INCT para Mudanças Climáticas - Fase 2.

É professor na pós-graduação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, onde também foi coordenador científico do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos e coordenador geral do Centro de Ciência do Sistema Terrestre.

É membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da Organização Meteorológica Mundial e do Comitê Científico do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. É membro titular da Academia Brasileira de Ciências, da Academia de Ciências do Estado de São Paulo, da Academia Mundial de Ciências (TWAS) e de grupos de trabalho no Brasil e no exterior sobre mudanças climáticas e mudanças globais.

É editor associado do International Journal of Climatology e dos Anais da Academia Brasileira de Ciências. É consultor na área de estudos ambientais de mudanças globais, impactos, vulnerabilidade e adaptação às mudanças climáticas e parecerista de diversas revistas científicas e de agências financiadoras no Brasil e no exterior. Foi membro do Comitê Assessor de Ciências Ambientais do CNPq.

FCW Cultura Científica – Com as mudanças climáticas, eventos como as recentes enchentes no Rio Grande do Sul e seca na Amazônia, ondas de calor em todo o mundo e muitos outros tendem a se tornar cada vez mais frequentes?

Jose Marengo – Quando falamos de mudança climática, falamos da consequência do aquecimento global, ou seja, do aumento da temperatura continental e dos oceanos. Com o aquecimento global, temos mais conteúdo de vapor, mais energia na atmosfera e o ciclo hidrológico se acelera. Como consequência, podemos ter extremos como ondas de calor, secas, furacões, tempestades e chuvas intensas que podem deflagrar desastres para áreas expostas e vulneráveis, além de elevar o nível do mar. Tudo isso tem impactos na população e nos ecossistemas. Nas últimas décadas, temos observado esses extremos como consequência do aquecimento global. O que os modelos do IPCC e de outros paineis, órgãos e grupos de pesquisa mostram é que, em um cenário com mais aquecimento global, a ocorrência de extremos tende a se intensificar. Ou seja, desastres como as enchentes no Rio Grande do Sul podem ocorrer mais frequentemente se as cidades não estiverem preparadas para suportar tamanho volume de chuva. Hoje, estamos experimentando extremos que eram esperados apenas para as próximas décadas, como fortes ondas de calor. Mesmo os invernos, a tendência é que fiquem cada vez mais quentes. Neste verão, no hemisfério Norte, tem ocorrido muitas ondas de calor. Estive em Nova York no início de julho quando a temperatura chegou aos 37 °C de dia e 25 °C de noite, um sufoco tremendo para uma cidade daquele porte. Esses eventos climáticos obviamente vão promover grandes impactos na população, no trabalho, na saúde e na segurança hídrica, alimentar e energética.


FCW Cultura Científica – No Brasil, quais são as áreas mais vulneráveis aos eventos extremos e onde a população está mais exposta?

Jose Marengo – Depende do extremo climático. Extremo é a ameaça, como o excesso de chuva, e desastre é a possível consequência dessa ameaça, como deslizamento de terra e enxurradas. As regiões mais vulneráveis a isso no Brasil são o Sul e o Sudeste. São as mais vulneráveis e também as que concentram a maior parte da população. É claro que Manaus, por exemplo, também é mais vulnerável a desastres, assim como algumas cidades do Nordeste, mas a maior concentração está no Sul e no Sudeste. O Nordeste e a Amazônia são vulneráveis a secas, que afetam as seguranças hídrica, alimentar e energética. No caso da Amazônia, afetam também a população que fica isolada, porque reduz o nível dos rios, que são meios de transporte, a frequência de queimadas aumenta e tudo isso afeta a população. Então, dependendo da região, o desastre varia. Como consequência das secas, podemos ter aumento na frequência em incêndios, como está acontecendo na Amazônia e no Pantanal. Ou seja, depende muito da região, mas Sul e Sudeste são as mais vulneráveis, porque são mais densamente populadas e são as que mais experimentam deslizamentos de terra, enxurradas e inundações.



FCW Cultura Científica – Desde a sua fundação, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) tem contribuído para reduzir o número de vítimas fatais de desastres naturais no Brasil. Poderia explicar o que é o que faz o Cemaden?

Jose Marengo – O Cemaden foi criado em 2011, depois do desastre na Região Serrana do Rio de Janeiro em janeiro do mesmo ano. Antes se fazia apenas previsão meteorológica, mas o prognóstico de chuva intensa não implica em desastre. Chuva não mata pessoas, porque uma chuva intensa pode cair em uma área sem população. Desastre ocorre quando uma chuva intensa cai em uma área densamente povoada, onde pessoas moram em locais de risco, perto de rios ou em encostas. O Cemaden não é um centro meteorológico, não faz previsão de tempo ou de clima. Nós usamos previsão de tempo e de clima para analisar dados e emitir alerta de risco de desastre. Esse é o nosso principal produto, o alerta de risco de desastre. Por exemplo, se está chovendo neste momento, isso pode gerar uma onda de inundação depois. O Cemaden faz o monitoramento e se, por exemplo, um rio ultrapassar a cota de inundação, emitimos um alerta para a população dos municípios na região sobre risco de inundação, que pode ser baixo, médio ou alto. Esse alerta vai para a Defesa Civil, que repassa para a população e tem tempo de evacuar lugares expostos, tirar pessoas de casa e reduzir o número de vítimas potenciais. Infelizmente, ainda ocorrem mortes porque muitas vezes as pessoas não querem sair de casa, têm medo de saques ou dizem que não há perigo porque nunca aconteceu antes. Mas acontece e aí quando as pessoas saem de casa é tarde demais, precisam subir nos telhados e muitas vezes a enxurrada leva telhados e pessoas. A percepção de risco é outro foco do trabalho no Cemaden. Além dos alertas, estamos tentando criar uma cultura de percepção de risco, como no Japão ou no Peru, onde desde pequenas as crianças já sabem o que fazer quando escutam ou sentem um terremoto. Saem de casa ou se escondem debaixo de móveis fortes, desde cedo sabem como se comportar. No Brasil, ainda temos um cenário em que muitas vezes alertas são emitidos e a população meio que não acredita, dizem que é apenas uma chuva e nada fazem. As consequências disso podem ser trágicas. Precisamos mudar essa mentalidade.


FCW Cultura Científica – Uma pesquisa apresentada em 2022 pelo Cemaden, conduzida com quase 2 mil municípios no Projeto Elos, indicou que a maioria dos municípios brasileiros não está preparada e não têm estrutura para enfrentar os desastres climáticos. Foi o que se verificou nas enchentes no Rio Grande do Sul, onde o Cemaden alertou autoridades antes das enchentes deste ano. Poderia falar sobre esse cenário e o que será preciso fazer para mudar?

Jose Marengo – É justamente isso, um pouco a forma como a população enfrenta os eventos climáticos. Obviamente que deve haver um forte envolvimento da Defesa Civil, porque é a Defesa Civil que recebe nossos produtos e pode evacuar as pessoas. A questão é que temos municípios com Defesa Civil muito bem organizada, como Florianópolis ou São Paulo, mas há outros sem Defesa Civil ou com uma Defesa Civil que conta com uma ou duas pessoas que ainda por cima não são técnicas, são cargos políticos, não têm o conhecimento técnico do que deve ser feito. Ou, se há conhecimento técnico, falta computador ou veículo. De modo geral, as Defesas Civis estão muito enfraquecidas e isso é um problema grave. Um dos pontos principais do Projeto Elos foi avaliar que as Defesa Civis devem ser profissionalizadas, devem ter especialistas, especialistas em bom número, e devem ser permanentes e sustentáveis. Quando digo sustentáveis quero dizer que elas não podem mudar quando o governo municipal muda, porque é o que ocorre. Muda o prefeito, muda a Defesa Civil e toda a experiência adquirida é perdida e tem que começar novamente do zero. Para poder reduzir o número de mortos como consequência de eventos climáticos, além de contar com uma boa previsão, precisamos de uma Defesa Civil profissional, muito bem organizada, capacitada e com recursos.


FCW Cultura Científica – Como fazer isso com o desinteresse ou falta de apoio político? Quando os governos vão entender que a mudança climática deve ser uma agenda prioritária?

Jose Marengo – Esse é um problema muito importante. Em 2022, houve um número elevado de mortos como consequência dos desastres com as chuvas em Petrópolis e Recife. O fenômeno foi previsto, mas ainda assim houve falhas. É como se fosse uma corrente, um elo é a previsão e outro elo é a percepção por parte da população e dos governantes. Muitas vezes esses elos são fracos e a corrente se rompe, é isso que tem acontecido. Temos percebido também que os recursos para combater desastres têm diminuído gradativamente. A natureza nos manda exemplos, como em 2023 em São Sebastião, em fevereiro, ou no Vale do Taquari, Rio Grande do Sul, em setembro, e novamente em maio de 2024. É como um deja vu. Vemos o desastre acontecendo, todo mundo se mobiliza, fazem doações, ajudam, o governo age, mas muitas vezes essas ações de governo não se traduzem em reforço da Defesa Civil. Se não há recursos, talvez possamos ter uma emenda parlamentar, seria bom já que não existem outros fundos. Neste momento, está sendo preparado o Plano Nacional de Defesa Civil. Será um documento técnico importante que precisa de apoio político. 



FCW Cultura Científica – De que forma as áreas atingidas por eventos e extremos climáticos devem considerar as mudanças climáticas em sua reconstrução?

Jose Marengo – Vou dar um exemplo. No Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite foi tão criticado que decidiu criar uma comissão científica para assessorá-lo sobre os planos de reconstrução de Porto Alegre e de outras áreas. Eu faço parte, pelo Cemaden, dessa comissão, formada por cientistas do Rio Grande do Sul e de órgãos de fora do estado. O governo estadual mandou os planos que elaboraram e nós estamos revisando e propondo mudanças. O governador nos deu independência total e deixou claro que vai seguir os comentários e revisões da comissão. Esse é um bom exemplo de um estado que está aceitando a ciência para poder planejar atividades futuras de reconstrução. Mas é um exemplo que, infelizmente, não está se espalhando por outros lugares, porque parece que o país está mais dedicado à reconstrução, que é onde tem mais dinheiro, quando deveria investir em prevenção. Não investimos o suficiente em prevenção, que é extremamente importante, porque sem prevenção vamos sempre esperar que o desastre ocorra para depois reconstruir. Quanto à reconstrução, é preciso levar em conta muitos fatores, por exemplo, se devemos reconstruir no mesmo lugar ou com o mesmo estilo de casas. Essa é outra questão importante, porque temos muitas áreas expostas no Brasil onde não deveria haver gente morando, mas sempre aparecem casas, até mesmo residências legalizadas que pagam IPTU e tudo o mais. Então, falta uma percepção por parte dos governos de que extremos de chuva estão aumentando e essa ameaça mata pessoas com desastres em áreas expostas e vulneráveis. É difícil impedir que um desastre ocorra, não dá para evitar o aquecimento global e a mudança climática, mas podemos amenizar os impactos, com adaptação e reconstrução em áreas seguras, mudando o tipo de casas, porque você pode ter idosos morando em morros que não conseguem subir para partes mais altas e fugir da correnteza. Temos que trabalhar para que se um desastre acontecer ele seja fraco e não afete muito a população. 


FCW Cultura Científica – Poderia falar sobre o INCT Mudanças Climáticas e quais são os principais objetivos?

Jose Marengo – O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia que coordeno é o INCT para Mudanças Climáticas - Fase 2. Ao terminar a Fase 1, em 2014, que foi coordenada pelo doutor Carlos Nobre, decidimos por uma continuação. Nossa missão é trabalhar com uma agenda multidisciplinar de mudanças climáticas, ou seja, não só aquecimento global e modelagem, mas ver como a mudança climática impacta setores e temas como agricultura, água, saúde e desastres. Há também componentes fortes em política pública, economia e comunicação, pois é preciso criar percepção. E claro que utilizamos o mais recente estado da arte em diferentes tipos de modelagem, seja meteorológica, hidrológica e de mudanças climáticas. A ideia é criar uma agenda multidisciplinar integrada em mudanças globais, ou seja, a mudança climática e seus impactos nos diferentes sistemas, tanto naturais como sistemas humanos. Há ainda uma agenda científica com artigos, livros, conferências, entrevistas, como esta, por exemplo. 


FCW Cultura Científica – Com relação à percepção pública, como fazer com que as pessoas entendam que o clima já mudou e que a crise climática está aqui?

Jose Marengo – É curioso, porque já vi várias pesquisas de opinião que indicam que 70% ou mais dos brasileiros estão cientes do que é mudança climática. Mas aí você pergunta, por exemplo, o que a pessoa faz para lidar com o problema e as respostas passam pelo “eu reciclo”, “ando de bicicleta”, “não como carne” ou “eu economizo água”, mas, infelizmente, já passamos dessa fase. São atitudes admiráveis, mas não são mais suficientes. Não vão resolver o problema da crise climática, que deve ser tratada com políticas públicas. Adaptação é uma política pública. Mitigação, redução de gases de efeito estufa e redução do desmatamento são políticas públicas. O Código Florestal é uma política pública e a única forma de ter políticas públicas ambientais eficientes passa por quem está no poder. Quem é o governador, quem é o prefeito, quem é o presidente. Em breve, teremos eleições municipais e é extremamente importante que a população, que é quem vota, que tem neste momento a faca e o queijo na mão, questione seus candidatos sobre a agenda ambiental, sobre o que vão fazer para proteger áreas com risco de desastres, sobre sua política ambiental, como vão trabalhar para a redução de lixo e da emissão de gases de efeito estufa, se esses candidatos têm alguma política de reflorestamento e de proteção. Isso é fundamental, porque são os prefeitos, os governadores, os deputados e os senadores que determinam as políticas públicas. Votar bem é atacar o problema pela raiz. Atualmente, está sendo elaborada uma política de adaptação pelos ministérios do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia, em colaboração com todos os outros ministérios, estou colaborando com isso também. Se queremos que essa política tenha sucesso, precisamos da colaboração de todos os setores. Se queremos enfrentar a crise climática, precisamos de políticas públicas boas, eficientes e que sejam bem executadas, e isso vai depender do Executivo e do Legislativo, mas quem escolhe o Executivo e o Legislativo é a população. 


 





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Revista FCW Cultura Científica v. 2 n.3 Setembro - Novembro 2024

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