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Abertura

Bomba-relógio

As mudanças climáticas ameaçam não apenas a natureza e os ecossistemas, mas também a vida de bilhões de pessoas, a estabilidade das sociedades e a sobrevivência das futuras gerações e da própria humanidade

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Desastres recentes como as enchentes no Rio Grande do Sul, secas na Amazônia e ondas de calor em todo o planeta evidenciam um cenário ruim e que tende a piorar, de acordo com cientistas e organizações que tentam entender e encontrar alternativas para a questão.

A história da humanidade nunca economizou em problemas, sejam eles guerras, conflitos, disputas, crises, epidemias, desastres ou tragédias. Ainda assim, em nenhum momento houve um problema com o potencial de destruição das mudanças climáticas. Mudanças resultantes do aquecimento global, que, por sua vez, é causado pela emissão de gases de efeito estufa, principalmente a partir da queima de combustíveis fósseis.  


As mudanças climáticas ameaçam não apenas a natureza e os ecossistemas, mas também a vida de bilhões de pessoas, a estabilidade das sociedades e a sobrevivência das futuras gerações e da própria humanidade. Desastres recentes, como as enchentes no Rio Grande do Sul, secas na Amazônia e ondas de calor em todo o planeta evidenciam um cenário ruim e que tende a piorar, de acordo com cientistas e organizações que tentam entender e encontrar alternativas para a questão.  


“Estamos jogando roleta russa com o nosso planeta”, disse António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas, diante dos resultados do Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), organização criada em 1988 por iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e da Organização Meteorológica Mundial (OMM).


A vida na Terra, a vida de todos os vegetais e animais, incluindo o causador do problema, está sendo afetada e ameaçada pelas mudanças climáticas. Desde os primeiros relatórios do IPCC, evidências e preocupações se acumulam sobre o aquecimento global, as mudanças no clima e os eventos extremos que impactam cada vez mais pessoas em todos os continentes. 


“A saúde, a vida e os meios de subsistência, bem como a propriedade e a infraestrutura crítica, incluindo sistemas de energia e transporte, estão sendo cada vez mais adversamente afetados por ondas de calor, tempestades, secas e inundações, bem como por mudanças mais lentas como a elevação do nível do mar”, destaca o relatório. 


“Isso pode ser visto nas profundezas do oceano e no topo das montanhas mais altas, em áreas rurais e também nas cidades. A extensão e a magnitude dos impactos das mudanças climáticas são maiores do que o estimado em avaliações anteriores, causando perturbações severas e generalizadas na natureza e na sociedade, reduzindo nossa capacidade de cultivar alimentos nutritivos ou fornecer água potável limpa suficiente, afetando a saúde e o bem-estar das pessoas e prejudicando os meios de subsistência”, diz o Sexto Relatório do IPCC.  


Segundo o documento, os impactos das alterações climáticas são sentidos em todo o planeta, com desafios crescentes em termos de disponibilidade de água, produção de alimentos e meios de subsistência. “Sabemos também que os impactos continuarão a aumentar se os cortes drásticos nas emissões de gases com efeito de estufa forem adiados ainda mais”, destaca. 



Emissões longe do zero


As mudanças climáticas são alterações de longo prazo nas temperaturas e nos padrões climáticos da Terra. Essas mudanças podem ocorrer naturalmente, devido a variações na atividade solar ou a grandes erupções vulcânicas. No entanto, desde o início do século 19, as atividades humanas têm sido a principal causa, especialmente devido à queima de combustíveis fósseis, como carvão, petróleo e gás. Essa queima gera emissões de gases de efeito estufa, que funcionam como uma manta envolvendo a Terra, retendo o calor do Sol e aumentando as temperaturas globais.


A temperatura média global chegou a 1,2 °C acima dos níveis pré-industriais e 2023 foi o mais quente desde 1850, quando os registros começaram a ser feitos, com 1,48 °C a mais na temperatura média. Os últimos dez anos foram os mais quentes já registrados. 


“As emissões globais de gases de efeito estufa continuam a aumentar, com contribuições históricas e contínuas desiguais decorrentes do uso insustentável de energia, da mudança no uso da terra, dos estilos de vida e dos padrões de consumo e produção entre regiões, entre países e dentro deles, e entre indivíduos”, diz o Sexto Relatório do IPCC. 


“O relatório enfatiza a urgência de ações imediatas e mais ambiciosas para lidar com os riscos climáticos. Meias medidas não são mais uma opção”, disse Hoesung Lee, presidente do IPCC de 2015 a 2023. 


Os cinco maiores emissores – China, Estados Unidos, Índia, União Europeia e Rússia – foram responsáveis ​​por cerca de 60% das emissões de gases com efeito estufa em 2021. O Grupo dos 20 – África do Sul, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Alemanha, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia, Turquia e União Europeia – responde por 76% das emissões.


Em 2015, na Conferência das Partes (COP21) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, 195 países firmaram o Acordo de Paris, um tratado internacional que visa reduzir a emissão de dióxido de carbono e de outros gases de efeito estufa de modo a limitar o aumento da temperatura global a, como destacaram, “bem abaixo dos 2 °C” em relação aos níveis pré-industriais, com esforços para que o limite seja de 1,5 °C. 


Para ficar abaixo de 1,5 °C de aquecimento global, as emissões precisam ser cortadas até 2030 em cerca de 50% e, até 2050, atingir o chamado net zero, ou seja, zerar as emissões. A questão é que, nove anos depois, pouco foi feito e o 1,5 °C provavelmente será superado em breve, segundo cientistas. 


“É importante que a população brasileira como um todo e a população mundial percebam que não existe qualquer possibilidade de limitar o aquecimento global neste século a 1,5 °C ou mesmo a 2 °C com as atuais taxas de emissões e com os compromissos dos países no Acordo de Paris. A ciência mostra claramente que estamos indo para uma trajetória de aumento de 3 °C”, disse  Paulo Artaxo nesta edição de FCW Cultura Científica, que entrevistou alguns dos principais cientistas brasileiros que estudam as mudanças climáticas e seus impactos. Carlos Nobre, Patrícia Morellato, Jose Marengo e Gilberto Jannuzzi são os outros entrevistados.


“Há uma preocupação e um medo muito grandes de que a temperatura chegue em 2050 com uma média global de 2,5 °C acima do período pré-industrial. A ciência está chamando atenção para isso faz tempo. Estamos reduzindo as emissões? Não. As emissões dos gases de efeito estufa continuam altas e precisamos zerá-las o mais rapidamente possível. Com o que vimos em 2023 e estamos vendo em 2024, deixar para zerar as emissões apenas em 2050 não vai mais ser suficiente”, disse Nobre. 


O aumento na temperatura é apenas parte do problema. Como a Terra é um sistema onde tudo está conectado, alterações em um ponto impactam outros. O resultado é que as consequências das mudanças climáticas incluem, entre outras, secas intensas, escassez de água, grandes incêndios, aumento do nível do mar, inundações, derretimento do gelo polar, tempestades catastróficas e declínio da biodiversidade. Além disso, as mudanças climáticas afetam a saúde humana, a capacidade de produzir alimentos, a habitação, a segurança e o trabalho.


“As consequências vão desde mortes devido a catástrofes relacionadas com o clima (das quais houve um aumento de cinco vezes nos últimos 50 anos), às 21,5 milhões de pessoas deslocadas anualmente por catástrofes relacionadas com as alterações climáticas. Significam também inundações, secas e tempestades mais extremas e mais frequentes, o que não só implicam em  enorme custo humano, mas também em enorme custo ambiental e financeiro”, destaca o Secretariado das Nações Unidas para Mudanças Climáticas. 


Uma conta que aumenta a cada dia. Segundo um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, “apesar dos sinais claros de aceleração dos riscos e impactos climáticos em todo o mundo, o déficit de financiamento da adaptação está aumentando e agora se situa entre US$ 194 bilhões e US$ 366 bilhões por ano. As necessidades de financiamento para a adaptação são de 10 a 18 vezes superiores aos atuais fluxos financeiros públicos internacionais para a adaptação – pelo menos 50% superiores ao estimado anteriormente”. 



Crise da biodiversidade


A perda de biodiversidade é outra consequência desastrosa das mudanças climáticas. De acordo com o Relatório de Avaliação Global da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), 1 milhão de espécies de plantas e animais estão em risco de extinção, muitas delas nas próximas décadas. A degradação dos habitats naturais, o desmatamento, a poluição e as mudanças climáticas são os principais motores dessa crise.


Segundo o IPCC, as mudanças climáticas induzidas pelo homem, incluindo eventos extremos mais frequentes e intensos, causam impactos adversos generalizados, perdas e danos relacionados à natureza e às pessoas, além da variabilidade climática natural. Alguns esforços de desenvolvimento e adaptação têm reduzido a vulnerabilidade, mas, em todos os setores e regiões, observa-se que as pessoas e os sistemas mais vulneráveis ​​são afetados desproporcionalmente. O aumento dos extremos climáticos e meteorológicos têm causado impactos irreversíveis, pois os sistemas naturais e humanos são levados além de sua capacidade de adaptação.


O aumento das temperaturas e os eventos climáticos extremos estão forçando espécies a migrar em direção aos polos, a se deslocar para altitudes mais elevadas ou a buscar águas oceânicas mais profundas. Muitas espécies estão atingindo seus limites de adaptação às mudanças climáticas, e aquelas que não conseguem se ajustar ou se mover rapidamente o suficiente estão em risco de extinção. Como resultado, a distribuição de plantas e animais em todo o mundo está mudando, e o momento de eventos biológicos importantes, como a reprodução ou a floração, está se alterando. Essas tendências afetam as teias alimentares e, em muitos casos, reduzem a capacidade da natureza de fornecer serviços essenciais para a sobrevivência, como proteção costeira, suprimento de alimentos e regulação climática por meio da absorção e armazenamento de carbono.


“Quando você tem uma alteração no clima, os nichos ambientais que as espécies ocupam são alterados e isso pode ter diversos efeitos nas espécies, tanto vegetais quanto animais, alterando a sua época reprodutiva. Pode ter efeito na sua reprodução, afetar o sucesso reprodutivo, afetando até na sua sobrevivência local. As espécies e seus indivíduos estão coordenadas umas com as outras, respondendo aos sinais do clima. As alterações no clima, especialmente devido às mudanças climáticas, promovem, em muitos casos, um desacoplamento entre indivíduos e espécies”, disse Patrícia Morellato. 



Desastres extremos


“Mudanças na temperatura, precipitação e clima extremo também aumentaram a frequência e a disseminação de doenças na vida selvagem, agricultura e pessoas. Vemos uma temporada de incêndios florestais mais longa e aumentos na área queimada. Cerca de metade da população mundial atualmente sofre com escassez severa de água em algum momento do ano, em parte devido às mudanças climáticas e eventos extremos, como inundações e secas. As condições de seca se tornaram mais frequentes em muitas regiões, afetando negativamente a agricultura e a produção de energia de usinas hidrelétricas”, destaca o Sexto Relatório do IPCC. 


Nos últimos meses, o Brasil enfrentou alguns desses exemplos, como a seca na Amazônia, que causou a maior queda nos níveis dos rios já registrada, e as enchentes no Rio Grande do Sul, que atingiram 478 municípios, deixando mais de 400 mil pessoas desalojadas. 


“Desastres como as enchentes no Rio Grande do Sul podem ocorrer mais frequentemente se as cidades não estiverem preparadas para suportar tamanho volume de chuva. Hoje, estamos experimentando extremos que eram esperados apenas para as próximas décadas, como fortes ondas de calor”, disse Jose Marengo. 


Ondas de calor cada vez mais frequentes têm provocado mortes e sofrimento em todo o mundo. Biomas, ecossistemas e até camadas terrestres estão desaparecendo, como o permafrost nas zonas próximas ao Ártico, que derrete pela elevação nas temperaturas, remodelando paisagens, deslocando populações e alterando hábitats. O derretimento do permafrost ameaça também libertar microrganismos desconhecidos e liberar para a atmosfera dióxido de carbono retido no gelo há milhares de anos. 


Nos centros urbanos, moradores “enfrentam maiores riscos de estresse por calor, redução da qualidade do ar devido a incêndios florestais, falta de água, escassez de alimentos e outros impactos causados ​​pelas mudanças climáticas e seus efeitos nas cadeias de suprimentos, redes de transporte e outras infraestruturas críticas”, como destaca o relatório do IPCC.



Transição energética


Além das mortes diretas em desastres provocados por eventos extremos ou ondas de calor, as mudanças climáticas causam cada vez mais doenças, desnutrição e ameaças à saúde física, mental e ao bem-estar. Em alguns anos, elas tornarão as áreas quentes ainda mais quentes, reduzindo drasticamente o tempo que as pessoas poderão passar ao ar livre, aumentando drasticamente a necessidade de uso de ar-condicionado e elevando exponencialmente o consumo de eletricidade.


“Se chegarmos a 4 °C de aumento na temperatura média global, uma grande parte do planeta se tornará inabitável aos humanos. Vamos ultrapassar a temperatura a que o corpo é capaz de resistir. Nosso corpo não tem como se adaptar e não há solução biológica para isso. Seria preciso vestir um ar-condicionado, mas não dá para imaginar bilhões de pessoas com roupas do tipo, consumindo uma energia gigantesca”, disse Carlos Nobre.


Gilberto Jannuzzi concorda que só pensar em ar-condicionado não é a solução e que é preciso pensar em maneiras eficientes de usar a energia e “desenvolver sistemas ou modos de vida mais eficientes, que tenham uma pegada ou uma necessidade de energia menor, para ter os benefícios que queremos ter no futuro”. 


“É um processo de valores e de cultura que precisamos mudar e isso também faz parte da transição energética. Nós herdamos uma vontade de consumir muito grande, fizemos projetos grandes para cidades grandes, para carros grandes e assim por diante. Mas o futuro não será mais assim. Não temos a solução ideal, mas a maneira como aprendemos a usar energia é incompatível com o futuro, temos que desaprender e entrar em um novo ciclo. Um ciclo que não será mais o do carbono e que provavelmente estará mais centrado em eletricidade e hidrogênio, mas no qual será imprescindível ter uma sociedade de baixo consumo de energia, com sistemas muito mais eficientes e que os hábitos sejam menos exigentes em termos energéticos”, disse.


 



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Revista FCW Cultura Científica v. 2 n.3 Setembro - Novembro 2024

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