Entrevista
Raquel Meister Ko. Freitag
Professora da Universidade Federal de Sergipe fala sobre os objetos de estudo da sociolinguística, que incluem variações geracionais, o efeito da escolarização, a exposição à cultura letrada e questões de gênero, do tipo falas femininas, falas masculinas ou falas não-binárias. "A língua não é homogênea. As pessoas não falam todas iguais", diz
Sobre
Professora titular do Departamento de Letras Vernáculas do Programa de Pós-Graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe. É membro do Comitê de Assessoramento de Letras e Linguística do CNPq.
É graduada em Letras, mestre e doutora em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina. Foi vice-presidente da Associação Brasileira de Linguística, vice-presidente do Grupo de Estudos Linguísticos e Literários do Nordeste e secretária da Associação Sergipana de Ciência.
Entre os livros que escreveu e organizou estão “Não existe linguagem neutra! Gênero na sociedade e na gramática do português brasileiro” (no prelo), “Desafios para Pesquisa em Sociolinguística” (2022), “Processos Psicossociais de Exclusão Social” (2020), “Documentação Sociolinguística, coleta de dados e ética em pesquisa” (2017), “A fala nordestina” (2016) e “Sociolinguística e Política Linguística: Olhares Contemporâneos” (2016).
FCW Cultura Científica – O que é a sociolinguística e o que ela estuda?
Raquel Meister Ko. Freitag – A sociolinguística parte da premissa de que, diferentemente do que muitos pensam, a língua não é homogênea. As pessoas não falam todas iguais. Mesmo dentro do que caracterizamos como uma mesma língua há variações e essas variações não são aleatórias, elas têm um comportamento que permite identificar grupos que se alinham por traços linguísticos. Eu estudo como diferentes subgrupos dentro de uma mesma língua vão se acomodando e se modelando. A língua é heterogênea e variável, está sempre em processo de mudança. Precisamos tomar cuidado com a palavra evolução, de pensar em processo contínuo ou de um aprimoramento. Não podemos falar que a linguagem melhora ou piora. Ela supre a demanda, está em constante processo de acomodação. Às vezes, as mudanças vão na contramão da expectativa daquilo que seria uma linha evolutiva. Uma forma que se amplia está evoluindo mas uma forma que reduz também pode estar evoluindo. A língua se acomoda em função dessas demandas de uso. A sociedade brasileira é heterogênea, nós não somos ovos de granja, com o mesmo tamanho e padrão. Temos variedades bem ampliadas, mas ainda assim temos características dentro do rótulo de língua portuguesa ou do português brasileiro. A sociolinguística estuda variações geracionais, o efeito da escolarização, a exposição à cultura letrada e questões de gênero, do tipo falas femininas, falas masculinas ou falas não-binárias. Antes, estudávamos microgrupos ou grupos específicos a partir de jargões. Hoje, estudamos padrões gramaticais específicos. Não é só um termo que uma pessoa usa, ela tem padrões, comportamentos gramaticais ou fonológicos característicos daquele grupo. A sociolinguística investiga as marcas do sistema linguístico que diferenciam um grupo de outro. São marcas pequenas que nem sempre percebemos no nível consciente. Observamos algo diferente na fala de uma pessoa mas não associamos ou identificamos o traço. Alguns são mais óbvios e salientes, outros nem tanto, e os indivíduos de uma variedade só se dão conta da diferença quando saem da bolha e entram em contato com alguém que fala diferente. A primeira dessas saídas geralmente é quando vamos para a escola. É quando começa o contato com falares de outros microgrupos ou grupos. Depois, isso se amplia por meio do ingresso no mercado de trabalho e de outras relações.
FCW Cultura Científica – Como é feita a coleta de dados e como a sociolinguística sabe se um dado obtido é uma exceção ou é uma variação, especialmente em um país com as dimensões do Brasil?
Raquel Meister Ko. Freitag – A sociolinguística tem um protocolo clássico de coletar falas controladas, mas controladas no sentido de que eu possa repetir a mesma estratégia com várias pessoas. Não é pegar um traço aleatório ou de uma única pessoa. Temos um padrão, um procedimento metodológico para replicar isso e poder ter generalizações de larga escala. Em nosso trabalho de coletar dados, fazemos entrevistas que seguem roteiros, com diferentes pessoas estratificadas em perfis sociais e observamos o comportamento de certos traços linguísticos. Por exemplo, um traço no português brasileiro com uma tendência bem forte é a expressão da primeira pessoa do plural. Estudamos na gramática que o correto é usar “nós”, mas no dia a dia, mesmo entre pessoas altamente letradas, a forma mais comum para se referir à primeira pessoa do plural é “a gente”. E isso não é necessariamente uma novidade. Os estudos coordenados por Ataliba Castilho no projeto Norma Urbana Linguística Culta mostravam isso desde os anos 1970. Só que é um traço variável na fala, não quer dizer que as pessoas só falam “a gente”. Elas variam, falam “nós”, falam “a gente”, fazem uso da primeira pessoa sem preencher o sujeito, só com a desinência – “queremos” não tem o sujeito mas pela desinência recuperamos o “nós”. Então, a mesma pessoa varia entre as estratégias e isso depende de outros fatores do contexto. Em situações de maior formalidade, tendemos a usar o “nós” e em situações de menos formalidade usamos o “a gente”, até mesmo inconscientemente. Outros traços são mais monitorados, como marcas de concordância, do tipo “as porta”, que podemos encontrar até entre pessoas de maior escolaridade mas com baixa frequência, escapadas em momentos de menor monitoramento na fala.
FCW Cultura Científica – Ainda se aplica falar em norma culta ou as mudanças têm sido tão grandes que essa diferenciação está sendo superada?
Raquel Meister Ko. Freitag – Essa é uma boa discussão. O trabalho do projeto Norma Urbana Culta, que é a base para gramáticas contemporâneas, como a do próprio Ataliba Castilho, do Marcos Bagno e de outros, teve como base coletas feitas nos anos 1970 e 1980, dentro de uma perspectiva de Brasil em que o acesso à educação superior era realmente de uma elite. Hoje, ainda, o acesso à educação superior não está tão universalizado, continua restrito e elitista, mas está mais alargado. Então, ou aceitamos que a elite é uma elite ampliada, e aí está todo mundo na norma culta, ou estabelecemos que há uma elite de berço ou mais conservadora e esses embates vão continuar a existir. Eu concordo que atualmente o rótulo “norma culta” soa estranho, ele não tem mais o senso de quase que exclusividade de antes. Temos um alargamento e outras variedades começaram a ser ouvidas e a quebrar essas hegemonias.
FCW Cultura Científica – Isso tem mudado especialmente com a popularização da internet e das redes sociais, não?
Raquel Meister Ko. Freitag – Um fator que tínhamos como mantenedor dessa ideia de norma culta e de um padrão a ser seguido, que polarizava a cultura para as massas, era a TV Globo, com o Jornal Nacional e a neutralização de sotaques nas novelas e programas. A TV aberta perdeu espaço para os streamings e youtubers, que ganharam visibilidade e passaram a colocar outros padrões em questão. Um fenômeno bem recente é que muitas mães começaram a procurar fonoaudiólogos por achar que seus filhos estavam com problemas porque usavam certos traços linguísticos que são de variedades não hegemônicas, como variedades do Nordeste para quem estava no Sudeste. Só que as crianças seguem modelos, seguem referências. Nos anos 1980 e 1990, os modelos de referência eram dublagens de desenhos animados, geralmente feitas pelos mesmos estúdios e dubladores. Na minha variedade de origem, no Sul do país, a forma “tu” era a forma hegemônica e a forma “você” entrava muitas vezes aprendida pelo desenho animado, onde todos falam dessa forma, mas ninguém achava ruim porque era a norma hegemônica, então não havia reação contrária. Hoje, há outras formas e vozes sendo ouvidas, que ganham status e passam a ser compartilhadas e esses traços linguísticos são disseminados. Passamos a ver que o nosso português é mais plural, não é só um da Globo. A própria GNT, que é um canal de assinatura da Globo, tem uma locutora de chamadas com traço linguístico do Recife. Quando ela começou a fazer as locuções, houve uma forte reação pedindo que “corrigisse” o sotaque. Toda vez que um traço não hegemônico entra em visibilidade, ele começa a ser questionado. Hoje, temos muitos padrões que estão galgando esse espaço de poder que as novas mídias como o YouTube, Instagram ou TikTok, permitem e ampliam a diversidade. As novas gerações estão tendo a oportunidade de serem educadas em uma linguística para a diversidade, de entrarem em contato com outras variedades que podem ser alçadas a modelos. Estamos lidando com mais diversidade e reconhecendo essas diversidades, o que é uma das premissas do multilinguismo. Nesse cenário, é pertinente questionar se o rótulo norma culta ainda se aplica. Ela não tem sido mais usada em editais, por exemplo, a própria Base Nacional Curricular Comum (BNCC) fala em variedades e evita essa hierarquização.
FCW Cultura Científica – A diversidade é importante ainda mais porque a linguagem da TV Globo nunca foi uma versão “oficial”, não era uma espécie de inglês da rainha, como na Inglaterra. Estávamos sendo direcionados por tentativas.
Raquel Meister Ko. Freitag – Tentativas de quem ocupa o poder e tem o poder de abrangência. Não é porque estavam dizendo que o deles era o melhor, é porque era o que chegava. Se é o que chega para mim, eu vou acreditar que é o modelo a seguir. Vemos isso no próprio sistema de televisão. Havia outros canais, mas aquele que pegava em tudo quanto é canto era a Globo, então tínhamos a noção de que aquela opção era a regra e o valor de referência. Não foi algo oficializado, mas uma consensualização pela restrição de oferta. A ampliação da diversidade é algo que vemos impactar inclusive na educação linguística, por exemplo, em cursos de língua estrangeira. Hoje, o curso não é mais somente de inglês britânico ou inglês norte-americano. Há outras vozes, outros ingleses, da Índia, da Austrália, de vários lugares, é um inglês com múltiplas realizações. Na realidade brasileira, ainda não tivemos essa oportunidade, mas é algo que está surgindo e é uma das linhas em que tenho trabalhado com colegas, de como oferecer essa formação no espaço escolar. E, nesse sentido, as redes, as novas mídias, são importantes para a educação linguística e para a diversidade porque conseguimos ter oportunidade de experienciar outras variedades. Temos que ouvir. Precisamos formar um padrão de referência das diferentes variedades que compõem a grande massa que é o português. Ouvir e reconhecer as variedades e entender que não há melhor ou pior. Antes, diziam que o português falado no Rio de Janeiro era o correto e que deveria ser referência, mas é que a Corte ficava no Rio de Janeiro, não é porque era o melhor. A falta de alternativas faz com que um único se torne referência e isso é muito conveniente para quem está no lugar de poder. Os outros precisam brigar por representatividade. Mas não há uma regra que estabeleça isso, não há um documento, uma oficialização. É algo que se torna consensual pela ausência de representatividade dos outros, daí a importância de dar visibilidade às outras variedades.
FCW Cultura Científica – Qual é a importância do ativismo sociolinguístico, que você destaca em seu trabalho?
Raquel Meister Ko. Freitag – A importância vai em dois sentidos. O primeiro é que por muito tempo a pesquisa sociolinguística teve como objetivo identificar padrões. Identificar um padrão, como a variação entre “nós” e “a gente”, era o suficiente no momento em que o Brasil desenvolvia sua pesquisa científica, sua pós-graduação e sua ciência linguística. Só que isso ficou restrito e continua como um saber descritivo, tanto que não é incorporado por materiais didáticos, ou seja, mesmo que hoje tenhamos “a gente” como pronome regular para primeira pessoa do plural, os materiais didáticos ainda replicam apenas o “nós”. Ainda que a maioria das gramáticas, até as mais conservadoras, façam uma observação de que existe também o “a gente”, o material didático continua engessado. A linguística, o estudo científico das línguas, tem que retroalimentar, tem que dar continuidade à espiral científica. Como podemos ensinar para um aluno na educação básica que o pronome “nós” é o único se a própria professora usa o “a gente”? Quando uma criança entra na escola, ela vem de uma comunidade, de um grupo, com uma fala específica, dentro de seus traços. Muitas vezes, por falta de preparo da própria escola, dos professores ou do material didático à disposição, identificam que essa criança tem um problema, porque fala diferente. Então mandam para o fonoaudiólogo ou para o psicopedagogo, transformando em patologia o que é natural, pois a variação é o estado natural da língua. E a criança vai sendo inserida assim nesse sistema, dizendo-se que ela fala errado, que tem problema e isso se acumula no sistema educacional com a culpa na criança e não na falta de preparo do próprio sistema. É confortável do ponto de vista de uma avaliação ter um certo e um errado, é mais fácil para dar nota, mas o estado natural da língua é a variação. Precisamos entender que há outras possibilidades, o que torna o processo muito mais difícil de colocar em um paradigma de certo e errado. Precisamos entender de contexto, de situacionalidade e difundir a ideia de que não existe uma variedade única. É a educação linguística para a diversidade. Ouvir o diferente e saber que aquele diferente não significa menos inteligente ou menos capacitado, é somente outra forma.
FCW Cultura Científica – Poderia falar sobre a questão do gênero na sociolinguística, tema de dois projetos de pesquisa seus e do livro Mulheres, Linguagem e Poder – Estudos de Gênero na Sociolinguística Brasileira?
Raquel Meister Ko. Freitag – A polarização masculino-feminino sempre foi usada como um fator explanatório, para explicar mudanças ou diversidades linguísticas, só que nem sempre isso é explicável por gênero. Explicações do tipo “mulheres são mais conservadoras porque têm mais papeis no cuidado familiar” ou “homens são menos conservadores porque têm mais espaço” talvez funcionassem quando as mulheres ficavam em casa, cuidando do lar e das crianças, e só os homens trabalhavam, o que não é mais realidade há muito tempo. Na educação superior, as mulheres são maioria, mas as explicações continuavam as mesmas. Então, decidimos fazer uma revisão de estudos para avaliar o contexto, ver o que estava acontecendo e como isso se estende para as questões atuais. As marcas não-binárias estão aparecendo? Em qual contexto? Para incluir pessoas não-binárias ou simplesmente para trocar o masculino ou feminino genérico por outro genérico? As pessoas não entendem? Isso atrapalha a leitura ou não? Interfere ou não na compreensão? Estamos iniciando um projeto de pesquisa para acompanhar a emergência dessas formas, medir os gatilhos e os fatores que as refreiam. É uma mudança emergente que precisa de tempo para mensurar. Essas marcas só começam a aparecer quando passamos a ter representatividade, daí a importância de valorizar a diversidade e dar espaço para formas que resolvam situações que não eram esperadas. Se deparamos com uma pessoa que não conseguimos definir, se não sabemos em nossa predição de gênero se usamos masculino ou feminino, é preciso emergir algo para incluir aquela pessoa no contexto.
FCW Cultura Científica – A mudança de Santa Catarina para Sergipe impactou a sua pesquisa sociolinguística?
Raquel Meister Ko. Freitag – Acho que foi um catalisador também daquilo que eu disse que só percebemos a diversidade quando temos oportunidade de ouvir o diferente. Vir para o Nordeste me fez abrir os ouvidos para detalhes que até então eu não prestava atenção, uma diversidade que não era sensível por não ser o meu habitual. Foi uma oportunidade de abrir os ouvidos para o diferente e comecei a perceber contrastes e a entrar nesse tipo de abordagem. Logo depois de ter ingressado na Universidade Federal de Sergipe, tivemos uma mudança bastante significativa no país com o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e o uso do Enem como mecanismo de acesso para educação superior. Antes, quem era de Sergipe ia ficar por aqui, quem era de Santa Catarina ficava por lá. Com o Sisu, passamos a ter uma situação de muita gente diferente convivendo e a diversidade ficou mais saliente, porque colocou os diferentes coexistindo. Foi uma nova percepção da diversidade bastante positiva para a ideia de que não há uma norma culta ou única, de que deve haver normas plurais. Foi um alargamento do que é estar na educação superior, em um processo gradual de aceitar as diversidades e questionar padrões até então estabelecidos.
FCW Cultura Científica – Como isso pode ajudar na questão da diversidade linguística na sala de aula?
Raquel Meister Ko. Freitag – A diversidade linguística na sala de aula precisa vir de maneira orgânica e natural, mas tem chegado de uma forma bastante estereotipada. Em livros didáticos, a diversidade entra na forma de uma tirinha do Chico Bento ou de algum personagem suburbano, sempre de forma estereotipada. Mas precisamos ouvir as pessoas falando e não pegar um recorte produzido com a intenção de construir uma personagem caracterizada. Se trouxermos para a sala de aula um traço sem antes discutir do ponto de vista linguístico como aquilo funciona, o aluno pode interpretar de maneira diferente daquilo que o professor planejou. Hoje, temos uma questão importante que é a linguagem não-binária ou linguagem neutra, como queiram definir, eu prefiro chamar de marcas não-binárias. Essa questão pode chegar na sala de aula como uma curiosidade, mas deveria estar um contexto – “tem uma pessoa não-binária, ela não se identifica com masculino nem como feminino, qual é a forma que devo usar?” Contexto e não mais curiosidade, como na tirinha do Chico Bento, “olha como o pessoal caipira fala”. Os tempos mudaram. O caipira de hoje é avaliado positivamente em algumas regiões, onde as pessoas fazem questão de dizer que são caipiras, mas em alguns contextos ainda carrega um estereótipo negativo. A diversidade linguística não é uma curiosidade a ser levada para a sala de aula, a diversidade linguística é um traço orgânico do sistema, que deve ser encarada como algo habitual. Toda vez que levamos uma curiosidade, o efeito pode ser reforçar ainda mais um estereótipo. Nesse sentido, é importante valorizar os repositórios. Se vou trabalhar com diversidade linguística, então preciso ouvir uma narrativa de uma pessoa na comunidade em questão, de modo a trabalhar com dados autênticos e não com recortes para apresentar como uma curiosidade e, eventualmente, estereotipar ou corrigir. Não temos que corrigir, precisamos respeitar o diferente.
FCW Cultura Científica – Na internet é comum ocorrer o contrário, com críticas ao diferente.
Raquel Meister Ko. Freitag – Sim e infelizmente isso vêm de perfis que têm muitas visualizações no Instagram ou TikTok, mas o destaque é para um certo-errado que não se ancora nem nos instrumentos normativos mais conservadores. As gramáticas contemporâneas do português estão bem arejadas, são mais aderentes à realidade linguística e são bem diferentes de gramáticas do início do século passado. Elas ainda não dão conta da linguagem das redes sociais porque a dinâmica de mudança é muito rápida. Essa instrução de certo ou errado é antipedagógica e não faz sentido, mas isso não ocorre só com a língua, é algo da sociedade. O nosso trabalho como linguista envolve mostrar que há opções, que há diversidade, que há outras maneiras e outras vozes. Por exemplo, a nova edição de Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, da Carolina Maria de Jesus, foi publicada tal qual ela escreveu, sem as correções ortográficas e alterações feitas para a primeira edição nos anos 1960. Isso é polêmico dentro da própria literatura. Há uma corrente que diz que todo autor tem o direito de edição e que para valorizar a expressividade da sua obra deveria ser revisado. Há outra corrente que diz que a forma não se separa de quem a autora era, então eu preciso daquilo para mostrar quem foi ela. E como a escola vai lidar com isso? Se eu tenho uma cultura de certo e errado, é mais fácil tirar o livro do programa da escola, e então voltamos à questão da marginalização. Para receber uma obra como Quarto de Despejo sem edição, é preciso ter na escola todo um trabalho de educação para a diversidade, mas temos uma escola que ainda trabalha com modelos de certo e errado e ela não está errada em fazer isso, ainda que também não esteja certa. A gente não conseguiu ainda achar o meio termo. Se eu venho de uma cultura escolar na qual a gramática é “certo e errado” e de repente me deparo com um exemplo de linguagem não-binária, é claro que isso terá uma reação contrária. O ensino e a concepção das aulas de linguagens precisam prever a diversidade desde a base, para que quando eu receba algo que seja marcadamente diverso daquilo que é hegemônico a recepção seja natural, eu reconheça como uma expressão de identidade dela e não como um certo e errado, sem essa dicotomia.
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