Entrevista
Carlos Joly
Professor emérito da Unicamp e mentor do programa Biota-Fapesp fala sobre a dimensão da crise da biodiversidade no Brasil e no mundo e por que a situação atual demanda ações urgentes e mudanças transformativas. ˜Estamos perdendo espécies em uma taxa sem precedentes e não sabemos se a nossa espécie vai sobreviver˜, diz
Sobre
Professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Carlos Alfredo Joly é o principal mentor e foi coordenador do Biota – Programa FAPESP de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade.
É coordenador da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e membro, entre outros, do Painel Multidisciplinar de Especialistas da Intergovernamental Platform on Biodiversity and Ecosystem Services (IPBES) e do Comitê Científico do Inter-American Institute for Global Change Research (IAI). É editor-chefe da revista Biota Neotropica.
Joly possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo, mestrado em Biologia Vegetal pela Unicamp, PhD em Ecofisiologia Vegetal pela Universidade de Saint Andrews (Escócia) e pós-doutorado pela Universidade de Berna (Suíça).
Entre os prêmios e distinções que recebeu estão o Prêmio Henry Ford em 1999 (Iniciativa do Ano na Área de Conservação) e 2009 (Ciência e Formação de Recursos Humanos), a Ordem do Mérito Científico, classe comendador (2002), o Prêmio Ambiental von Martius da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha (2005) e o Prêmio Muriqui da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (2012). Em 2022, foi o ganhador do Prêmio FCW de Ciência.
FCW – Professor Joly, qual é o estado atual da crise da biodiversidade? Estamos melhorando ou piorando?
Carlos Joly – Em 2019, a Plataforma Intergovernamental Político-Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) divulgou um balanço global da biodiversidade que mostra uma situação muito mais sombria do que se imaginava. No relatório, a IPBES alerta que até o fim deste século um milhão de espécies estarão extintas se não modificarmos os nossos processos atuais. O cenário é tão ruim que levou a uma mudança de parâmetro na própria Convenção da Diversidade Biológica, que acompanhei de perto. Em 2010, quando foram aprovadas as Metas de Biodiversidade de Aichi – na 10ª Conferência das Partes na Convenção da Diversidade Biológica, realizada no Japão –, os países tinham 10 anos para cumprirem aquelas 20 metas. Isso não foi feito e em algumas houve até mesmo retrocesso. Em outras, como na ampliação da área de conservação, houve algum progresso, mas, no geral, as metas não foram cumpridas por nenhum dos países.
FCW – Esse não cumprimento das metas foi um dos principais pontos na Conferência de Biodiversidade da ONU (COP15), que deveria ter ocorrido em 2020 na China e, por causa da pandemia de Covid-19, foi realizada em dezembro de 2022 no Canadá.
Carlos Joly – Foi um momento em que os países prestaram contas e mostraram o que fizeram com relação às Metas de Aichi. Na COP15, em Montreal, os países participantes negociaram um novo acordo, um novo marco global para biodiversidade com 23 metas para serem atingidas até 2030. Mas essas novas metas são mais operacionais do que propriamente metas de conservação. É a mudança de parâmetro de que falei. Por exemplo, até 2030 temos que desativar todos os subsídios negativos da biodiversidade. Ou seja, temos que criar um ambiente mais favorável à biodiversidade operando em questões que terão obviamente custos bastantes elevados. São 23 metas até 2030, mas pensando em 2050. A ideia é pôr tudo para funcionar até 2030 de modo que vinte anos depois estejamos vivendo em harmonia com a natureza, que é a frase padrão mas também a frase chave disso tudo. Também na COP15 foi criado um braço do Global Environment Facility (GEF) com foco exclusivamente em biodiversidade. Começou com uma doação da China, outros países já fizeram suas doações e agora estão começando a definir como esses recursos serão utilizados.
FCW – Como os países poderão cumprir as novas 23 metas se já não cumpriram as 20 anteriores?
Carlos Joly – É fundamental entender que mudanças incrementais não serão mais suficientes. Não adianta mais simplesmente dizer coisas do tipo “vamos aumentar as áreas protegidas das atuais 17% para 30%”. Lógico que isso ajudaria, mas não vamos resolver o problema da conservação se não tivermos o que chamamos de mudanças transformativas, como sair da economia baseada em carbono fóssil ou mudar hábitos alimentares adotando uma dieta com menos proteína animal. Mudanças transformativas são realmente importantes para que possamos atingir as metas da COP15. A IPBES está fazendo neste momento um diagnóstico de quais seriam essas mudanças e do que poderá ser feito para atingi-las.
FCW – Isso é importante também porque muitos ainda não se deram conta da crise da biodiversidade, diferentemente das mudanças climáticas, mais visíveis por conta de fatores como os eventos extremos.
Carlos Joly – No caso da biodiversidade as pessoas não percebem a extinção de espécies, por exemplo. Ainda não chegamos no ponto de ver interrompidos serviços ecossistêmicos essenciais aos seres humanos, mas em alguns casos isso está próximo. Temos, por exemplo, a crise das abelhas, que são fundamentais para a produção de alimentos. A extinção de espécies de animais polinizadores será um grande desastre. Mas, no geral, as pessoas não sabem ou ignoram esses casos, o que é diferente das mudanças climáticas, onde vemos e experimentamos catástrofes, que infelizmente estão se tornando cada vez mais frequentes e intensas. Mas a situação da biodiversidade é crítica e estamos perdendo espécies em uma taxa sem precedentes na história. Isso, no passado geológico, levou a extinções em massa, como a dos dinossauros há 65 milhões de anos. Podemos estar entrando agora em uma nova extinção em massa e não sabemos se a nossa espécie será uma das que vão sobreviver à esta catástrofe.
FCW – Apesar de a crise da biodiversidade ser tão importante como a crise climática, ela não tem tido a mesma repercussão.
Carlos Joly – Infelizmente, nos últimos anos a questão da biodiversidade perdeu espaço na mídia. Um espaço muito maior é dado à questão das mudanças climáticas, é só ver a cobertura das duas conferências das Nações Unidas, a Conferência sobre Biodiversidade e a Conferência sobre Mudanças Climáticas. A COP15, Conferência sobre Biodiversidade, foi realizada em dezembro e praticamente ninguém cobriu aqui no Brasil, houve poucas notícias divulgadas pela grande imprensa. A Conferência sobre Mudanças Climáticas sempre tem cobertura diária. E as duas crises estão imbricadas, elas estão muito interligadas e temos que achar mecanismos que sejam positivos para a solução de ambas. Uma dessas medidas é a questão da restauração, mas não a restauração de uma floresta plantada para daqui a sete anos ser cortada e virar papel. Estou falando de uma restauração ecológica permanente, pois enquanto essas árvores estiverem crescendo elas estarão absorvendo CO2 da atmosfera. Tanto que foi esse o compromisso que o Brasil assumiu no acordo de Paris, de restaurar 12 milhões de hectares para contrabalançar as suas emissões. Essa restauração, se feita de forma planejada, será altamente benéfica para a biodiversidade, porque você está colocando espécies nativas, está criando corredores que interligam fragmentos isolados, ou seja, é uma situação ganha-ganha. É importante para as duas convenções, da Biodiversidade e do Clima. Então é esse tipo de solução que está sendo buscada em conjunto. No ano passado, a IPBES produziu junto com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) uma publicação mostrando o quão imbricadas estão essas crises, mas falta um diálogo maior e não vemos isso chegar na mídia, que pouco mostra como as questões estão intimamente relacionadas.
FCW – A Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES), da qual o senhor é um dos coordenadores, produz regularmente sínteses do conhecimento disponível tanto pela academia como pelos saberes tradicionais sobre biodiversidade e serviços ecossistêmicos. Em comparação com o resto do mundo, como está a conservação da biodiversidade no Brasil?
Carlos Joly – Estamos em uma situação intermediária, não estamos entre os piores mas também não estamos entre os melhores. O Brasil, até o fim do governo Dilma, não só ampliou como deu condições de instalação e de funcionamento a muitas unidades de conservação. Houve uma preocupação com uma política nacional de pagamentos por serviços ambientais, que é outra forma de ganha-ganha. Houve todo um esforço para produzir relatórios para as duas convenções, de Mudanças Climáticas e de Biodiversidade, relatórios verdadeiros, os mais realistas possível, não relatórios distorcidos para parecer que a situação está melhor do que realmente está. Então, pudemos montar um arcabouço legal bastante forte, mas agora estamos vivendo uma situação bastante difícil pois passamos quatro anos desmontando esse arcabouço legal. Veja por exemplo a situação da aprovação da Medida Provisória que reestrutura os Ministérios, onde o congresso mudou questões importantes que deveriam continuar na área ambiental, como a Agência Nacional de Águas ou o Cadastro Ambiental Rural (CAR) de regularização ambiental das propriedades privadas. Vamos precisar trabalhar bastante para manter um status de conservação.
FCW – E quanto aos pontos positivos?
Carlos Joly – O Brasil é um dos poucos países que assumiu a tarefa de fazer planos de recuperação e restauração para as espécies ameaçadas de extinção. Nós temos planos do que precisa ser feito e em alguns casos isso já está sendo feito para praticamente todas as principais espécies ameaçadas. A maior parte dos países africanos ou do Sudeste Asiático que também tem grande biodiversidade não tem esse tipo de proteção. O Brasil tem liderança em alguns assuntos. Por exemplo, sempre fomos protagonistas tanto na Convenção de Mudanças Climáticas como na de Biodiversidade. Protagonista também no IPCC e no IPBES, onde sempre tivemos brasileiros entre os diretores, o que é um reconhecimento da qualidade da pesquisa que fazemos no país. Por isso, chegamos nesses postos, mas nos últimos anos perdemos muito no terreno caseiro e ficamos com uma imagem péssima no exterior. Nas reuniões da IPBES eu quase que precisava pedir desculpa por ser brasileiro. Eles dizem “vocês estão destruindo, vocês estão queimando” e não adianta responder que quem compra a madeira tirada da Amazônia é europeu ou norte-americano. Essas respostas não são mais suficientes frente ao grau de destruição que estamos vivendo.
FCW – Esse cenário já apresentou sinais de melhoria no novo governo?
Carlos Joly – Temos a chance de restaurar a confiança que perdemos nos últimos quatro anos. E isso começou quase que de imediato com a mudança de governo e com a entrada da Marina Silva para assumir o ministério, que não por coincidência agora se chama Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, as duas grandes questões imbricadas. A Marina tem um respeito internacional excelente, como também tinha a Izabella Teixeira [ministra do Meio Ambiente de 2010 a 2016, nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff], uma negociadora fantástica. Eu acho que vamos conseguir recuperar e o importante é que temos base de pesquisa, que não parou. Bem ou mal, com menos dinheiro, mais devagar do que se desejava, a comunidade científica se manteve articulada, continuou trabalhando e produzindo trabalhos importantes e criando mecanismos de continuidade. Então, temos uma boa chance de recuperar uma posição de vanguarda.
FCW – Essa é uma boa deixa para ouvir sua opinião sobre como a pesquisa em biodiversidade é importante para melhorar a informação do público e para a formulação de políticas. Aí entramos, claro, no Biota, programa criado em 1999 com apoio da Fapesp que é uma grande referência nesses dois aspectos.
Carlos Joly – Em 2020, fizemos uma série de eventos para comemorar os 20 anos do Biota. Naquelas reuniões, virtuais por conta da pandemia, avaliamos as diferentes subáreas do programa, o quanto avançamos no conhecimento e o quanto precisamos avançar. Trouxemos pesquisadores de outros países para falar de novidades, para provocar propostas de novos projetos. Concluímos que a biodiversidade no Estado de São Paulo não piorou durante os primeiros 20 anos do Biota. Em alguns aspectos melhorou, como na cobertura vegetal. Outro exemplo de melhoria ocorreu por conta dos programas de reintrodução de felinos desenvolvidos pela Fundação Zoológico, que têm obtido resultados muito positivos com reprodução em cativeiro. Entre as contribuições do Biota estão a geração de um modelo de pesquisa que foi incorporado por outros estados, de ter equipes multidisciplinares fazendo levantamentos, de incluir as contribuições de populações tradicionais, indígenas, ribeirinhos ou quilombolas. Por que não adianta ignorar ou dizer coisas do tipo "unidade de conservação é uma reserva biológica então não pode ter ninguém lá dentro". Ora, já tinha quando criaram, porque criaram no papel, não houve trabalho de campo para essa criação. Então você tem que respeitar, tem que fazer como foi feito na região da Jureia, onde criou-se um mosaico de reservas extrativistas, onde há áreas de preservação que são de preservação mesmo. Aprendemos bastante e eu acho que o país tem aprendido bastante com os modelos e ideias que têm saído do Biota.
FCW – O senhor se afastou recentemente da coordenação do Biota, após ter trabalhado com os outros membros e pesquisadores do programa em um plano estratégico de ação que inclui a divisão em novos eixos temáticos e focos de atuação que nortearão o programa nos próximos anos. Poderia falar sobre essas novidades?
Carlos Joly – Uma das novidades no Biota, que está sendo implantada com bastante sucesso, são os centros de síntese, voltados para a solução de problemas a partir de novas ideias e modelos derivados da organização e reinterpretação de dados de pesquisa. O Biota Síntese, coordenado pelo Jean Paul Metzger, está trabalhando junto com as secretarias estaduais de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, de Agricultura e da Saúde em pesquisas de alta qualidade para gerar publicações de alto impacto e, ao mesmo tempo, soluções para problemas enfrentados pelo Estado de São Paulo. Seja, por exemplo, um melhor zoneamento econômico-ecológico ou uma política de polinizadores que impeça o uso de vários dos pesticidas utilizados atualmente que são muito maléficos para esses animais. O programa também trabalha na área de restauração, usando o que é permitido pelo Código Florestal. São respostas a demandas das Secretarias mas os projetos não são pilotados por elas, são pilotados pelos dois lados, pelos pesquisadores das universidades paulistas e pelos técnicos das Secretarias, trabalhando em conjunto para identificar soluções.
FCW – O SinBiose, centro de Síntese em Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, criado pelo CNPq, também segue esse modelo.
Carlos Joly – É um programa pioneiro que também foi criado com essa visão de integrar informações em busca de soluções. Por quatro anos eu fiz parte do conselho do programa, representando a Fapesp. Agora, o SinBiose está chegando na fase final dos projetos e tem havido dificuldade nas conversas com os usuários dos resultados das pesquisas, algo que ficou para ser feito só no final. É melhor ter esse diálogo desde o início. É difícil transformar os resultados em policy briefs [sumário executivos], por exemplo, pois envolve uma linguagem totalmente diferente e a maioria dos pesquisadores não tem treinamento para isso. Você precisa de uma equipe que saiba como fazer, que saiba usar essa linguagem. O Biota conta com a Érica Speglich e a Paula Drummond, que são muito capazes e têm ajudado demais o programa nessas atividades, mas precisamos de mais profissionais como esses no país, pois precisamos divulgar o avanço do conhecimento e a aplicação do conhecimento que está sendo gerado.
FCW – O Biota também tem um papel fundamental no fornecimento de subsídios que resultam na formulação de legislação e de políticas públicas.
Carlos Joly – Quando criamos o Biota, fomos extremamente ingênuos em achar que ao colocar informações de alta qualidade ou dados georreferenciados em banco de dados públicos, de acesso livre, o tomador de decisão consultaria esses bancos e usaria os dados em suas decisões. A linguagem deles é outra, diferente da nossa de cientistas. Percebendo isso, o Ricardo Ribeiro Rodrigues, quando assumiu a coordenação do Biota, decidiu se aproximar das Secretarias, das ONGs e de outros atores institucionais. Daí resultaram mapas como os de Áreas Prioritárias para Incremento da Conectividade e de Áreas prioritárias para Criação de Unidades de Conservação, usados na análise de pedidos para uso de áreas com florestas nativas, por resolução da Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Percebemos que só conservar não adiantava, era preciso entrar com restauração em muitas das áreas e isso foi conversado e discutido com a própria Secretaria. Os mapas do Biota passaram a orientar a tomada de decisão da Secretaria com relação à conservação e restauração. Essa aproximação dos pesquisadores com os formuladores de políticas foi extremamente importante e não tenho a menor dúvida de que isso influenciou o próprio interesse da Fapesp em renovar o apoio ao Biota. Estávamos terminando os dez anos iniciais e esses bons resultados criaram a expectativa de que o trabalho continuasse evoluindo. Agora, depois de 20 anos, o Biota Síntese é uma nova evolução desse trabalho. Estamos colocando os tomadores de decisão para participar na elaboração do projeto. O pessoal da saúde, por exemplo, com a questão dos vetores, de estudar as situações climáticas, a destruição ou a conservação de florestas, o que é importante e o que não é, o que ajuda a controlar a população de alguns desses vetores. São questões a que nós pesquisadores poderíamos chegar, mas o pessoal das Secretarias já tem essas questões prontas, pois tratam de suas demandas de trabalho. Então, é isso: vamos juntar forças e vamos fazer a pesquisa necessária para poder dar orientações mais seguras. O Biota Síntese é uma evolução do que foi feito na produção dos mapas das áreas prioritárias.
FCW – Poderia falar sobre a importância da conservação da diversidade biológica para o desenvolvimento econômico?
Carlos Joly – Temos hoje cerca de 7% de Mata Atlântica remanescente, se considerarmos fragmentos acima de 100 hectares – se considerarmos todos os fragmentos talvez possamos chegar a um pouco mais de 15 a 18%. Pois esse pouco da vegetação remanescente é responsável por dar qualidade de vida a 135 milhões de brasileiros que moram no domínio da Mata Atlântica. É a Mata Atlântica que fornece a água, não só para beber mas para gerar energia hidrelétrica – 53% da energia hidrelétrica produzida no Brasil vêm de rios que nascem na Mata Atlântica. Se remover esse pouco que sobrou, se não conservar, se modificar a Lei da Mata Atlântica por achar que ela é muito restritiva, vai pôr em risco serviços importantíssimos para esses milhões de brasileiros. Quando conseguimos demonstrar que as áreas preservadas prestam serviços ecossistêmicos essenciais, seja da água, da energia, dos polinizadores, da estabilidade das costas, conseguimos ver sua importância e que o desenvolvimento depende de ter todos esses sistemas funcionando. Se tirarmos de vez, como quase está acontecendo no Planalto Central e no Cerrado, vamos deixar de abastecer os aquíferos, que são superimportantes para toda a agricultura nas regiões Centro-Oeste e Sudeste. Aí vão dizer “nossa foi uma seca tremenda”, mas é claro, todo o sistema que permite a entrada da água da chuva, no momento que se tira tudo aquilo para plantar soja e se usa toda a água superficial – por que o sistema radicular é superficial – praticamente não chega mais água e não vamos mais ter o reabastecimento do lençol freático. Aí teremos um preço cada vez mais alto em relação à estrutura de irrigação que será preciso montar. São essas as conversas que precisamos ter. Uma parte menos conservadora do agronegócio conversa com os cientistas numa boa, por que entende dessas necessidades. Agora tem uma parte mais retrógrada – e que infelizmente tem uma representação alta no Congresso, a bancada ruralista está nessa parte mais retrógrada – que toma decisões que empurram cada vez mais para o precipício o seu próprio desenvolvimento, a própria sobrevivência deles enquanto agricultores.
FCW – Como fazer para mudar esse cenário?
Carlos Joly – Em parte a falha é nossa, que não conseguimos comunicar bem como isso funciona e precisamos melhorar e participar mais. Na Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos estamos produzindo um diagnóstico de agricultura, biodiversidade e serviços ecossistemas e chamamos a Sociedade Rural Brasileira para ouvir o lado deles e apresentar o nosso. Isso é muito importante. Em uma negociação o bom é quando todo mundo sai triste, sinal de que todos tiveram que ceder e se avançou para um consenso possível. Precisamos aprender a fazer isso. O pessoal mais esclarecido do agronegócio tem ajudado bastante nessa discussão, porque eles conseguem ver o quanto estão sendo prejudicados por essa irracionalidade, sabem que não precisam derrubar para plantar mais ou para criar mais gado. Está havendo uma mudança de mentalidade. Seria ótimo se fosse mais rápida, mas está acontecendo.
FCW – O Biota Transformação, outro novo eixo temático do programa, envolve transições em direção à sustentabilidade levando em consideração questões sociais e integrando cientistas e organizações públicas, privadas e sociedade civil de forma a estimular a elaboração de projetos nessa temática.
Carlos Joly – O Biota Transformação inclui obrigatoriamente o elemento humano e os projetos conduzidos nesse eixo devem incluir pesquisadores da área biológica e pesquisadores das áreas sociais. E não me refiro a simplesmente chamar alguém das sociais só para dizer que está cumprindo a proposta do programa. Não, a própria redação tem que ser uma redação na qual se percebe a necessidade de dados das áreas biológicas e sociais para atingir os objetivos colocados. Tenho acompanhado os projetos que estão sendo realizados por pesquisadores do Biota na região de São Luiz do Paraitinga, com apoio da Fapesp e do GEF [Fundo Global para o Meio Ambiente]. São projetos que envolvem pequenos proprietários que penavam para sobreviver, com poucas cabeças de gado, cultivando milho ou mandioca ou com uma horta para consumo próprio. Pessoas com uma vida muito limitada, muitos idosos, cujos filhos se mudaram para Taubaté ou São José dos Campos. E os pesquisadores do projeto fizeram levantamentos, trabalharam com essas populações e implantaram mecanismos de pagamento por serviços ambientais, de remuneração pelos serviços ambientais de suas propriedades que geram benefícios para a sociedade. Não é só por proteger o recurso hídrico, mas também o estoque de carbono, o corredor que está se formando para biodiversidade. Gerar uma renda para aqueles pequenos agricultores. Oferecer a eles algo que aqui em São Paulo era fantástico e que infelizmente acabou, que eram as Casas de Agricultura, de extensão rural, que prestavam serviços que de certa forma o Projeto Conexão Mata Atlântica está retomando. Como se faz escova de milho, como se coloca algo de maneira para plantar sem provocar erosão, sem assorear. No início os produtores locais estavam reticentes mas depois, quando começaram a ver os bons resultados e os ganhos dos que entraram no programa, todos queriam entrar. Outro problema é que os locais não podiam vender seus produtos, a não ser em tendas na beira da estrada. Como eles não têm CNPJ não podem, por exemplo, vender para compradores que exigiam nota fiscal ou entrar em uma concorrência para merenda escolar. Então, o projeto incluiu pessoal da área de administração, de economia, que ajudaram a criar associações ou cooperativas, enfim, a encontrar formas de ter um CNPJ, de ter selo de qualidade, para poder então expandir o mercado desses produtores e, com isso, aumentar sua renda. Do ponto de vista da biodiversidade é muito importante pois muitos corredores estão sendo restabelecidos com o Parque Estadual da Serra do Mar, que está próximo. O resultado é uma transformação bastante grande, benéfica e permanente na região. Esse é o resultado de quando olhamos o socioeconômico e o ambiental ao mesmo tempo.
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