Entrevista
Luís Marcelo Aranha Camargo
Médico e cientista fala sobre a atuação do ICB5, núcleo avançado de pesquisa e atendimento em saúde mantido pela USP em Rondônia, e de como a telemedicina tem ajudado a população de áreas remotas na Amazônia
Sobre
Professor no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do ICB5, em Monte Negro (RO). É professor colaborador do Instituto Leônidas e Maria Deane (Fiocruz Amazônia) e da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP. Possui graduação em Medicina pelo Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC, com residência em Medicina Preventiva pela Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, mestrado em Microbiologia e Imunologia pela Unifesp e doutorado em Ciências pela USP.
Consultor ad hoc das fundações de amparo à pesquisa do Acre, de Minas Gerais, Rondônia e de São Paulo, é revisor de revistas nacionais e internacionais e editor associado da Frontiers in Parasitology - Epidemiology and Ecology. Tem experiência na área de Medicina, com ênfase em Medicina Tropical, atuando principalmente nos seguintes temas: Rondônia, Amazônia, entomologia médica, epidemiologia, doenças negligenciadas e processo de envelhecimento.
FCW Cultura Científica – O Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo mantêm desde 1997 uma base permanente na cidade de Monte Negro, em Rondônia, que funciona como um núcleo avançado de pesquisa e realiza atendimento gratuito em saúde para a população da região. O que motivou a criação dessa base, conhecida como ICB5?
Luís Marcelo Aranha Camargo – O ICB5 tem o DNA do maior parasitologista brasileiro, o professor Samuel Barnsley Pessoa, que dirigiu a Faculdade de Medicina da USP em meados do século passado e sempre se preocupou com as conotações socioeconômicas e ambientais das doenças. Na década de 1980, a malária era um grande problema para o Brasil e os professores Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Erney Plessmann de Camargo, seguidores de Pessoa, queriam compreender melhor a epidemiologia e imunologia da endemia e implementaram um projeto de pesquisa com recursos da Organização Mundial da Saúde e apoio do governo de Rondônia. Em 1990, montamos uma base em Porto Velho para realizar o projeto. Nossa missão era colher amostras de sangue de pacientes com e sem malária, examiná-las e capturar os mosquitos transmissores para realizar análises laboratoriais em São Paulo. Em 1993, o Departamento de Parasitologia do ICB me ofereceu a oportunidade de permanecer em Rondônia, pois as doenças endêmicas andavam em baixa em São Paulo e era de interesse do departamento manter um pesquisador mais próximo das parasitoses. Em 1997, o professor Luiz Hildebrando assumiu a base de Porto Velho e eu vim para Monte Negro.
FCW Cultura Científica – Por quê Monte Negro?
Luís Marcelo Aranha Camargo – A primeira vez que vim para Monte Negro foi em outubro de 1996, enquanto executava um projeto de consultoria para o Banco Mundial que envolvia um plano de ocupação racional do espaço, chamado Plano Socioeconômico e Ecológico do Estado de Rondônia. Eu era responsável pela parte de saúde e visitei alguns municípios pelo país para avaliar suas vulnerabilidades e o potencial para ocorrência de doenças. No caso de Rondônia, o objetivo era também tentar entender como evitar a tragédia que o estado vivia com a malária. Quando cheguei em Rondônia, em 1990, dos 650 mil casos de malária por ano no Brasil, 350 mil eram daqui. Então, a ideia era prevenir e fazer ações que evitassem o aumento de risco de doenças infecciosas. Em Monte Negro, me apresentei ao então prefeito Jair Miotto e falei sobre o plano. Minha equipe tinha 10 pessoas, que andavam pelas ruas coletando insetos. O prefeito, que tinha acabado de ser eleito, nos apoiou e aproveitou para pedir que eu montasse um projeto de saúde para o município. Eu disse que poderia ajudá-lo e depois passei uma semana em Monte Negro, conheci o sistema de saúde, as áreas urbana e rural, fui ao hospital, ao cartório para levantar óbitos e nascimentos e tentei entender o que estava acontecendo na cidade. Fiz e entreguei o projeto e, na noite de Natal, recebi uma visita de um grupo liderado pelo Jair, levaram-me um leitão assado, um monte de coisas, e ele disse que todos tinham gostado do projeto mas não tinham quem pudesse executá-lo. Foi então que me convidou e eu aceitei.
FCW Cultura Científica – Como era o projeto?
Luís Marcelo Aranha Camargo – Envolvia descentralizar o atendimento, o que hoje consiste na estratégia de saúde da família mas na época não existia essa visão do Ministério da Saúde. O atendimento era hospitalocêntrico, era tudo no hospital, desde a realização de teste para gravidez até atendimento a baleado, parto, dor de cabeça, diarreia, era tudo no hospital, não tinha um filtro. E o projeto estabelecia uma equipe volante de saúde, chamada EVS, que era composta de um médico, uma enfermeira ou técnico de enfermagem e em algumas ocasiões um vacinador de cães, por causa da raiva, e essa equipe se deslocava para prestar atendimento onde estavam os problemas. Fiz um estudo de vulnerabilidade de algumas localidades e elegemos 14 áreas em função de diversos indicadores. Visitávamos cada uma dessas comunidades a cada 45 dias e comecei a fazer uma produção para criar indicadores de saúde. O Ministério da Saúde não tinha isso, ainda não tinha sido criado o Siab, o Sistema de Informação da Atenção Básica. E nossos indicadores norteavam as ações para saber onde intervir em determinado momento. Era um trabalho difícil, de acordar de madrugada e dirigir para o meio do mato, muitas vezes ficávamos presos porque atolava o carro ou uma ponte caía. Eu carregava na bagagem uma experiência muito rica em minha formação médica, de ter trabalhado na década de 1980 no Parque Indígena do Xingu com o professor Roberto Baruzzi. O Projeto Xingu da Escola Paulista de Medicina, que ele criou, estava voltado para o atendimento aos povos indígenas. Era uma ideia diferente de saúde na qual os participantes tinham que ser polivalentes, não especialistas, tinham que fazer parto, atender acidentados, atender acidentes ofídicos, doenças infecciosas e tudo o mais que fosse preciso. Aplicamos a experiência do Xingu para a área rural da Amazônia e foi um sucesso muito grande. Monte Negro foi eleito o município com o melhor sistema de saúde do estado e o prefeito foi reeleito com 75% dos votos. Isso durou alguns anos mas, depois, por discordar de algumas diretrizes da prefeitura para o projeto, acabei me desligando e retomei as atividades na USP.
FCW Cultura Científica – Foi então que vocês criaram o ICB5?
Luís Marcelo Aranha Camargo – Formalmente, o ICB5 foi criado apenas em 2015, mas ele foi estabelecido desde 2001, com apoio do professor Henrique Krieger, então diretor do ICB. Começamos em uma pequena sala com 20 metros quadrados e hoje ocupamos quase todo um quarteirão, com 10 ambulatórios, auditório, alojamento e alguns serviços de saúde que o SUS não oferece por aqui, como retinografia, eletrocardiografia e pequenas cirurgias de pele. Temos muitos casos de câncer de pele, por que a população migrante que veio para cá na década de 1970 e 1980 era branca, do Sudeste e Sul, e aqui estamos a 9 graus do Equador, então são uns dois casos de câncer de pele por semana.
O ICB5 realiza pequenas cirurgias e tem como um de seus diferenciais o uso da telemedicina (foto: Cecília Bastos/USP Imagens)
FCW Cultura Científica – Quando essas populações chegaram e depois, quando você chegou, o grande problema na região eram as doenças infecciosas como a malária, mas hoje há outro perfil no atendimento, que está mais voltado a doenças crônicas.
Luís Marcelo Aranha Camargo – Sim, quando eu cheguei, em 1997, o ambulatório prestava atendimento de doenças como malária, leishmaniose, hepatite e hanseníase. Com o tempo, o atendimento mudou, porque a população mudou. Ainda temos muita ocorrência de doenças infecciosas e parasitárias. Temos dengue, chikungunya, zika, malária, leishmaniose e hanseníase, mas são doenças em que a letalidade costuma ser baixa. Nos últimos 10 anos, 60% dos óbitos na região se devem a doenças crônicas não transmissíveis. Como a população envelheceu, tivemos que mudar o modo de assistir em nossa unidade básica de saúde. Eu mesmo passei a ser geriatra sem ser geriatra, tive que estudar, entender diretrizes. Há cinco anos, formamos o primeiro ambulatório de geriatria do estado de Rondônia. Temos inclusive publicado trabalhos sobre a questão do envelhecimento na Amazônia.
FCW Cultura Científica – O que esses trabalhos têm mostrado?
Luís Marcelo Aranha Camargo – Eu tinha a impressão, como médico que atende diariamente, que minha população tinha envelhecido, mas isso podia ser uma impressão. Cientista faz o quê? Se tem uma impressão, vai usar o método científico para verificar ou não a hipótese. Fizemos um estudo por meio do qual examinamos 92% dos idosos da área urbana de Monte Negro. Fizemos retinografia, exame de sangue, medimos, pesamos, aferimos pressão e verificamos uma prevalência muito alta de doenças crônicas não transmissíveis, como hipertensão arterial (em 65% da população), dislipidemia (67%) e diabetes tipo 2 (22% da população). Identificamos catarata em 50% da população. Aí veio a seguinte pergunta, onde está a raiz do problema? Achei inicialmente que os idosos estavam tendo uma sobrevida ruim e que o sistema de saúde era frágil e que não conduzia bem esses pacientes no sentido de prevenir. Por exemplo, mais de 60% não recebiam remédio para hipertensão ou dislipidemia, então vão ter derrame, vão ter infarto. Mas resolvemos ir atrás de outra suspeita e fomos investigar as crianças de Monte Negro. Fizemos um estudo com 500 escolares, dos cerca de 1,5 mil da região, e identificamos fatores de risco altíssimos. Crianças com hipertensão, sedentarismo, obesidade, dislipidemia. Então a semente é essa. É a criança que está mal-cuidada, a dieta na escola não é boa, é suco artificial com biscoito, tudo industrializado e errado. Depois estudamos a população idosa e escolar ribeirinha na região de Humaitá, no Amazonas. É uma população mais tradicional, que está há dois séculos na beira do rio, um cruzamento de originários com nordestinos principalmente da época do ciclo da borracha. Os resultados com os idosos foram muito semelhantes aos de Monte Negro, um retrato muito ruim da saúde em geral. As crianças se mostraram menos obesas mas por serem mais pobres. São menos sedentárias por que têm que fazer tudo a pé e têm menos "tempo de tela".
FCW Cultura Científica – Como funciona o atendimento prestado pelo ICB5 dentro do sistema de saúde público na região?
Luís Marcelo Aranha Camargo – Aqui trabalhamos com unidades básicas de saúde, são quatro na área rural e três em área urbana, uma das quais é o ICB5, que integra o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde e é uma unidade básica de saúde de maior complexidade dentro do sistema de saúde municipal de Monte Negro. Sou também coordenador do Programa Mais Médicos na região e tenho dez médicos sob minha tutela, cinco em Monte Negro e cinco em Alto Paraíso, uma cidade vizinha. Alguns desses médicos são formados no estrangeiro, então não conhecem as diretrizes do Ministério da Saúde, outros são jovens com pouca experiência de Amazônia, das doenças que temos aqui. Então, quando têm na unidade básica de saúde deles um caso em que não sabem como proceder, eles encaminham para nós. O ICB5 funciona como uma referência, tanto que 30% do movimento em nossos ambulatórios é de fora de Monte Negro. Recebemos pacientes até mesmo de Ariquemes, que tem 111 mil habitantes e é a maior cidade da região.
O atendimento no ICB5 hoje é mais voltado a doenças crônicas e assistência à uma população que está envelhecendo (foto: Cecília Bastos/USP Imagens)
FCW Cultura Científica – Um dos diferenciais do ICB5 é a telemedicina, ou medicina digital, resultado da parceria com instituições em São Paulo. Poderia falar sobre esse recurso?
Luís Marcelo Aranha Camargo – Isso realmente é uma mão na roda. Por exemplo, ao atender um paciente com problema de visão, eu sei fazer um fundo de olho, sei interpretar, mas tem muitas coisas que só o especialista pode fazer. Então, mandamos o exame para a equipe do professor Rubens Belfort Jr., na Unifesp, que prontamente nos responde. Ou seja, o paciente de Monte Negro tem seu exame interpretado por alguns dos melhores oftalmologistas do país, em São Paulo, a 3 mil quilômetros de distância. Quando implantamos a telemedicina com o professor Belfort, a fila para um paciente de Monte Negro ser atendido por um oftalmologista em Porto Velho, que fica a 250 quilômetros, era de três anos. Para quem vive no Sul ou Sudeste isso parece inacreditável, mas era a realidade, três anos para ser examinado. Hoje, reduzimos a demanda para três meses. Temos uma parceria também com o Incor [Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP], por meio da qual fazemos um eletrocardiograma e, quando é difícil de interpretar ou precisamos de uma segunda opinião, mandamos para nossos colegas em São Paulo que devolvem na mesma hora a informação de que precisamos. Temos também uma colaboração importante com o Departamento de Patologia da USP, da equipe do professor Paulo Saldiva, que examina as biópsias que fazemos no ICB5. Como eu disse, temos muito caso de câncer de pele e temos também hanseníase, para a qual o diagnóstico de ouro é a biópsia de pele. Aqui no SUS você não consegue fazer esse exame. Então, mandamos para a Faculdade de Medicina da USP pelo Correio e a equipe do professor Saldiva devolve o resultado em 30 dias. Depois chamamos o paciente, lemos para ele o laudo e estudamos uma estratégia terapêutica.
FCW Cultura Científica – Como você vê o sistema de saúde na Amazônia hoje, comparado com quando chegou por aqui, há cerca de 30 anos?
Luís Marcelo Aranha Camargo – Melhorou muito. Hoje temos estradas, internet, antes energia elétrica era dia sim dia não, então a parte operacional melhorou bastante. Mas ainda há muitos problemas. Em Rondônia aumentou o número de escolas de medicina, mas não conseguimos fixar o médico por aqui, ele vai para uma região ou área mais desenvolvida, não quer ir para o interior da Amazônia. Temos também uma dificuldade de referenciamento ao SUS. Para boa parte das consultas, um morador de Monte Negro tem que viajar por cerca de 250 quilômetros, por exemplo. Temos o estrangulamento do SUS e uma promiscuidade muito grande entre o ambiente político e a periferia do sistema de saúde. Muitos gestores são indicados políticos, sem qualquer conhecimento ou afinidade com a área de saúde. Toda vez que tem eleição é um problema sério. Tivemos muita dificuldade no enfrentamento do Covid, porque eu e vários médicos fomos contra a distribuição do kit cloroquina e a favor da vacinação. Isso nos causou muito trabalho, problemas com o Ministério da Saúde na época, que não era favorável à nossa posição, mas a gente tem que fazer nosso papel de cidadão e enfrentar isso. Não podemos ter medo.
FCW Cultura Científica – Como são as atividades de extensão do ICB5?
Luís Marcelo Aranha Camargo – Todas as férias de julho e de dezembro temos os períodos de extensão universitária. A organização está a cargo do Centro Acadêmico do Centro Universitário São Lucas, de Porto Velho. Recebemos alunos da Faculdade de Odontologia de Bauru da USP, que agora também tem o curso de medicina. Na última vez foram mais de 40 alunos e professores da FOB, de odontologia, fonoaudiologia e medicina. Além deles, temos estudantes do Brasil inteiro e do exterior, que se propõem a fazer estágio aqui.
FCW Cultura Científica – E pesquisa, poderia dar algum exemplo do que estudam no ICB5?
Luís Marcelo Aranha Camargo – No momento temos, por exemplo, uma pesquisa sobre saúde mental do idoso. Trata-se de um corte transversal da população de idosos na área urbana de Monte Negro para avaliar demência, ansiedade e depressão. São 250 participantes e já temos algumas informações importantes, como alto índice de demência, mas ainda são resultados preliminares, estamos na fase da análise de dados. Temos também um trabalho de doutoramento, com bolsa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, sobre morcegos, mamífero que carrega vários patógenos, entre eles o coronavírus. É um trabalho em parceria com o Ministério da Saúde, que quer identificar novos vírus transmitidos por morcegos para não perder tempo na produção de vacina no caso de uma nova pandemia. E aproveitamos que capturamos morcegos para coletar sangue – depois soltamos – para estudar também quais ectoparasitos eles carregam. Morcegos têm muito carrapatos vetores de doenças, têm também umas moscas que são exclusivas deles, que evoluíram junto eles e perderam as asas. Estamos estudando também a alta prevalência de arboviroses na população ribeirinha e isolada. Queremos entender se as pessoas estão contraindo doenças quando vão para o centro urbano ou se temos novos insetos transmissores locais. Já colhemos 250 amostras de sangue para serem examinadas no ICB, em São Paulo, onde está sendo feita a parte molecular para identificação dos arbovírus. O estudo também tem parceria com a Fiocruz de Rondônia.
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Entrevista e edição: Heitor Shimizu
Publicado em: 20/04/2023
Entrevista concedida em: 13/02/2023
Fotos do destaque e do entrevistado: Cecilía Bastos/USP Imagens