Editorial
A obrigação social com a Amazônia
Pesquisas que ampliam o conhecimento sobre doenças negligenciadas e atendimento à população em áreas remotas ajudam a enfrentar os problemas de saúde na região
Divulgadas pela imprensa em janeiro, as imagens de indígenas Yanomami doentes e desnutridos chocaram o país. Resultado da desassistência, do descaso e de atos criminosos, as fotos e vídeos de crianças e adultos em situação de desespero causam ainda mais indignação por representarem uma história que se repete.
Nos quatro anos de presidência de Jair Bolsonaro, 570 crianças com menos de 5 anos morreram na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, por doenças que antes de tratadas deveriam ter sido evitadas. Mas o grande aumento no garimpo ilegal ocorrido nos últimos anos, que destruiu a terra, a água, a agricultura, a caça, a pesca e a saúde dos Yanomami repete algo que ocorreu na mesma região há pouco mais de 30 anos. Estima-se que em janeiro havia cerca de 20 mil garimpeiros ilegais no território Yanomami. No fim dos anos 1980, eram mais de 40 mil.
A volta da mineração criminosa em nova corrida do ouro em um local que deveria estar protegido e ser preservado é um importante sinal da fragilidade da saúde na Amazônia. Além da destruição visível promovida pelo garimpo, a atividade ilegal amplia o impacto de uma velha conhecida da região, a malária. O número de casos registrados no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami pulou de 9.928 em 2018 para 20.393 em 2021. Em toda a Amazônia, área responsável por mais de 99% dos casos de malária no Brasil, são mais de 140 mil casos por ano.
A malária não está sozinha. Na Amazônia, ao contrário do resto do país, ainda é grande o impacto das chamadas doenças negligenciadas, como hanseníase, leishmaniose ou doença de Chagas, causadas por agentes infecciosos ou parasitas. Além disso, semelhante ao restante do país, a Amazônia tem enfrentado cada vez mais o aumento das doenças crônicas como hipertensão, câncer, diabetes e diversos problemas cardiovasculares ou metabólicos. Isso tudo em uma área que engloba, no Brasil, nove estados e mais de 5 milhões de quilômetros quadrados, mas onde a presença de médicos e de profissionais de saúde é a menor do país.
Para falar sobre os principais problemas que envolvem a saúde na Amazônia, esta edição de FCW Cultura Científica entrevista alguns dos principais profissionais no país com trabalhos e pesquisas na área. Os médicos Luís Marcelo Aranha Camargo, Rubens Belfort Jr. e Paulo Basta, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha e a ministra da Saúde Nísia Trindade Lima, todos cientistas renomados, não apenas abordam os problemas mas também alternativas que podem ajudar a superar cenários desoladores na região amazônica.
"Era parte de nossas obrigações sociais atuar de alguma forma a entender e minorar as consequências da nova epidemia malárica", disse o professor Erney
Quando fechamos a pauta desta edição, em fevereiro, definimos que um dos entrevistados seria um dos mais renomados pesquisadores no mundo na área de saúde, que por coincidência estava ao nosso lado, como presidente da Fundação Conrado Wessel. Era o professor Erney Plessmann de Camargo, parasitologista com décadas de atuação na Amazônia e em outras regiões do país, que faleceu em março deixando um vazio não apenas nesta edição, mas nos corações de seus muitos amigos.
Era um pesquisador reconhecido desde que publicou, no início dos anos 1960, um trabalho sobre o protozoário causador da doença de Chagas, até hoje um dos mais citados na literatura científica na área. No fim da década de 1980, Erney foi para a Amazônia para ajudar o país a enfrentar a explosão de outra doença infecciosa e parasitária, a malária. Rondônia estava vivendo uma explosão em casos da doença, resultado da busca de ouro por milhares de garimpeiros.
“Nos anos oitenta, Luiz Hildebrando Pereira da Silva era pesquisador chefe do Laboratório de Malária do Instituto Pasteur de Paris e eu havia recentemente migrado da Escola Paulista de Medicina para a chefia do Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. Luiz Hildebrando e eu, ambos discípulos de Samuel Pessoa e originários do assim chamado Departamento Vermelho da Faculdade de Medicina da USP, entendemos que era parte de nossas obrigações sociais atuar de alguma forma a entender e minorar as consequências dessa nova epidemia malárica”, escreveu Erney em artigo para o Jornal da USP.
“Procuramos nosso amigo, o professor Marcos Boulos, que já atuava em Rondônia, para nos pôr a par da situação e nos apresentar aos serviços e alguns profissionais de saúde de Rondônia. A partir daí, Luiz Hildebrando começou a vir com frequência ao Brasil e ambos passamos a visitar Rondônia com relativa assiduidade. Luiz Hildebrando progressivamente convenceu-se de que seu lugar era lá. Começamos a submeter projetos de pesquisa a várias instituições nacionais e internacionais”, escreveu no artigo.
Conseguiram apoio de várias instituições – OMS, Opas, Finep, Fapesp e CNPq – e recrutaram jovens pesquisadores para ajudá-los nos projetos na Amazônia, como Luís Marcelo Aranha Camargo, então pesquisador da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen-SP).
“O Luís Marcelo passou a colaborar em vários projetos dos governos estadual e federal, inclusive no atendimento às tribos indígenas. Delegamos a ele também o estudo da malária em garimpos e madeireiras, sendo que nestas últimas pudemos caracterizar a malária como “doença profissional”. Vivíamos uma vida de faroeste. Com o tempo e muito trabalho, as coisas foram melhorando e nosso relacionamento com o governo também”, disse Erney.
A casa do professor Luiz Hildebrando, que se aposentou na USP, passou a ser o ponto de apoio aos outros pesquisadores e médicos que viajavam para Rondônia. “A equipe foi aumentando com a adesão dos professores Marcello Barcinski e Henrique Krieger, dos seus pós-graduandos e dos alunos de pós-graduação meus e do Luiz Hildebrando. Com o tempo constituímos uma pequena colônia uspiana em Rondônia à qual se associaram alguns médicos que haviam migrado recentemente da UnB, como Mauro Tada, Juan Salcedo, Roberto Penna e Elza Noronha”, escreveu no artigo.
A atuação dos professores Erney e Luiz Hildebrando e de seus colegas resultou na publicação de dezenas de artigos científicos que aumentaram o conhecimento sobre as doenças infecciosas que assolavam a Amazônia. Resultou também na instalação do ICB5, base que a USP mantém desde 1997 na cidade de Monte Negro, em Rondônia, e que funciona como um núcleo avançado de pesquisa e realiza atendimento gratuito em saúde para a população da região. É Luís Marcelo, filho do professor Erney, que fala sobre a atuação do ICB5 nesta edição de FCW Cultura Científica.
Boa leitura!
Carlos Vogt
Editor-chefe
Fotos: Leo Otero (MPI) e Rovena Rosa / Agência Brasil
Foto Erney Camargo: Heitor Shimizu