Abertura
Saúde na Amazônia
Em meio à calamidade promovida pelo garimpo ilegal e pelos anos de falta de assistência na Terra Indígena Yanomami, médicos e cientistas destacam os principais problemas em saúde na Amazônia e trabalham em soluções
Notícias sobre a Amazônia costumam ser ruins. O que não é exclusividade da região, pois, como se costuma dizer, “notícia boa não vende jornal”. Nos últimos anos, a Amazônia tem feito parte da cobertura da imprensa principalmente quando novos números sobre desmatamento são divulgados. É o momento em que repórteres pegam calculadoras para dizer o equivalente a quantos campos de futebol foram perdidos em floresta no período em questão.
No início de 2023, a Amazônia voltou aos noticiários por uma desgraça ainda maior. Uma calamidade.
"Não estamos conseguindo contar os corpos”, foi o título de reportagem publicada em 20 de janeiro pelo Sumaúma. Segundo dados obtidos pelo site de notícias sobre a Amazônia, durante a presidência de Jair Bolsonaro 570 crianças com menos de 5 anos morreram na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, por doenças que poderiam – deveriam – ser tratadas. Como disse a reportagem, foi o que “as estatísticas chamam de ‘mortes evitáveis’”.
“O desmonte da saúde indígena durante os 4 anos do governo Bolsonaro levou várias aldeias ao colapso sanitário. Com pouco acesso à saúde e medicamentos em falta, crianças e velhos morrem de desnutrição ou por doenças tratáveis, como vermes, pneumonia e diarreia”, disseram as autoras da reportagem, que relataram também o fortalecimento de uma velha conhecida da região, a malária. Apenas em Auaris, onde vivem 896 famílias, foram registrados 2.868 casos de malária nos últimos dois anos. Em todo o território Yanomami, foram 11.530 casos confirmados de malária somente em 2022.
A repercussão foi instantânea e os principais veículos da mídia brasileira imediatamente se voltaram à crise da saúde no território Yanomami. No dia seguinte, 21 de janeiro, a notícia se internacionalizou. No dia 22, o recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou a Terra Indígena Yanomami acompanhado pelos ministros Nísia Trindade (Saúde), Sonia Guajajara (Povos Indígenas) e Wellington Dias (Desenvolvimento Social).
“Se alguém me contasse que em Roraima tinham pessoas sendo tratadas da forma desumana como o povo Yanomami é tratado aqui, eu não acreditaria. Nós vamos tratar os nossos indígenas como seres humanos, responsáveis por parte daquilo que nós somos”, disse Lula.
O presidente instituiu o Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território Yanomami, com o objetivo de discutir medidas a serem adotadas. O Ministério da Saúde declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional para combate à desassistência sanitária dos povos que vivem no território indígena Yanomami. Nos primeiros 30 dias após a declaração de emergência, mais de 5 mil atendimentos médicos foram realizados no território Yanomami, pelos mais de 100 profissionais enviados pela Força Nacional do SUS para a região.
A crise de saúde na Terra Indígena Yanomami começa a ser combatida, mas um bom tempo será necessário até que as notícias sejam boas. É consenso entre os especialistas que o grande aumento do garimpo ilegal, aliado à grave desassistência sanitária, especialmente durante o governo Bolsonaro, foram os principais fatores que desencadearam a tragédia atual na região. Estima-se que pelo menos 15 mil garimpeiros estavam ilegalmente na Terra Yanomami em janeiro. Mas essa invasão não foi a primeira.
Depois que ouro foi descoberto na região do Ericó, em 1980, o afluxo ilegal de garimpeiros à região onde vivem os Yanomami continuou durante toda a década e culminou na “corrida do ouro” ocorrida entre 1987 e 1990. Em 1989, cerca de 40 mil pessoas trabalhavam em garimpos ilegais próximos a comunidades Yanomami e 66 mil viviam direta ou indiretamente dessa atividade no estado de Roraima.
Com a criação da Terra Indígena Yanomami, a situação melhorou. “Em 1991, foi realizada a operação Selva Livre e a Terra Indígena Yanomami foi demarcada. No ano seguinte foi homologada e começaram operações mais intensificadas, como explosão de pistas clandestinas de pouso. Com a desintrusão dos garimpeiros, de meados da década de 1990 até meados da década de 2010 houve certa calmaria na região, mas a partir do final de 2013 o afluxo de garimpeiros voltou com força, expandindo-se drasticamente a partir de 2016 e atingindo o ápice durante o governo Bolsonaro”, disse Paulo Basta, pesquisador da Fiocruz que trabalha junto ao povo Yanomami desde 1999.
Basta é um dos entrevistados desta segunda edição da revista digital FCW Cultura Científica. O cientista estuda os efeitos da contaminação por mercúrio, problema que afeta povos como os Yanomami. O problema não atinge apenas as terras indígenas e sim toda a Amazônia e sua população, por meio do consumo de pescado com altos níveis do metal tóxico. O mercúrio usado na extração de ouro pelo garimpo ilegal termina nos rios e ingressa na cadeia alimentar. Os efeitos são catastróficos e duradouros. A contaminação do ambiente pelo metal pode durar mais de um século.
Os peixes contaminados por mercúrio são consumidos por indígenas que vivem em áreas remotas, por ribeirinhos que moram há séculos nos afluentes do Amazonas e pelos moradores das pequenas comunidades espalhadas pelos 5 milhões de quilômetros quadrados da Amazônia Legal, que abrange 59% do território brasileiro. Mas os pescados contaminados também chegam à mesa da população dos 775 municípios da Amazônia Legal, incluindo Manaus, Porto Velho e Belém.
Consumir uma fonte de proteína com nível de mercúrio acima dos recomendados pelas agências de vigilância sanitárias é apenas um dos problemas que atinge a saúde na Amazônia. Há muitos outros, como a falta de médicos, de profissionais de saúde e de equipamentos. Na Amazônia há, por exemplo, três vezes menos cardiologistas e oncologistas do que no resto do país. A distribuição também é desigual. Quem vive em áreas remotas – e o que não falta na Amazônia são áreas remotas – pode levar anos para conseguir ser atendido por um médico em um hospital público em uma cidade maior.
“A fila para um paciente de Monte Negro [em Rondônia] ser atendido por um oftalmologista em Porto Velho, que fica a 250 quilômetros, era de três anos. Para quem vive no Sul ou Sudeste isso parece inacreditável, mas era a realidade, três anos para ser examinado”, disse o médico Luís Marcelo Aranha Camargo, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP).
Camargo, fundador e coordenador do ICB5, base do ICB-USP em Monte Negro, conta como o uso da medicina digital (ou telemedicina) tem ajudado e melhorar a situação da saúde na região. Os profissionais do ICB-5 atendem os pacientes e enviam os exames para serem analisados pela equipe do professor Rubens Belfort Jr., no Instituto da Visão e na Escola Paulista de Medicina.
Graças a essa colaboração, foi possível reduzir a demanda por atendimento oftalmológico em Monte Negro para três meses. Os médicos identificam e resolvem problemas que atingem uma população que também na Amazônia tem envelhecido, como catarata, glaucoma e, principalmente, presbiopia.
“Em toda a Amazônia, a causa mais importante da baixa visão é a falta de óculos para perto. São muitas pessoas que, por não terem óculos de perto, não podem mais ler, escrever, colocar isca no anzol, fazer artesanato e vão ficando fora da sociedade. Esse é um grande problema, ainda mais dramático quando se sabe que esses óculos podem ser baratos”, disse Belfort Jr.
O médico e cientista realiza há mais de 40 anos trabalhos assistenciais de atendimento oftalmológico na Amazônia e em outras regiões carentes do país, que inclui de exames a cirurgias. Com apoio de indústrias, os projetos que conduz já distribuíram mais de 100 mil óculos para perto. Mas para atender à uma demanda grande e crescente, Belfort Jr. defende a distribuição de óculos de perto pelo sistema público de saúde.
Os problemas de saúde na Amazônia são ampliados por conta da ação humana. “Em relação aos desafios contemporâneos à saúde, um dos principais é a questão das mudanças climáticas e seu impacto nas condições ambientais e de saúde”, disse Nisia Trindade Lima, ministra da Saúde.
Além da perda da biodiversidade, atividades como desflorestamento, queimadas e garimpo ilegal tendem a promover um impacto cada vez maior na saúde da população na região. Nesse ponto, o conhecimento dos povos tradicionais pode apontar soluções.
“Neste momento de crise no planeta quem está segurando a floresta em pé e está mantendo a biodiversidade são as populações tradicionais. Isso é flagrante quando se compara o desflorestamento nessas áreas com o desflorestamento médio em cada bioma. É muito claro que são essas populações que estão conservando e até aumentando a biodiversidade”, disse Manuela Carneiro da Cunha, outra entrevistada desta edição.
Reportagem e edição: Heitor Shimizu
Fotos: Leo Otero (MPI) e Fernando Frazão / Agência Brasil